2. O Norte Fluminense: o contexto da modernização agrícola e dos conflitos pela terra
“A produção de cana e de açúcar no Brasil constituiu-se, desde os primeiros momentos de instalação, numa das atividades econômicas destinadas à oferta de produtos para o mercado externo. Após a criação do PROALCOOL (1975), a este objetivo se acresceu o atendimento do crescente mercado de compra do álcoolcombustível. Em face destas destinações, as condições técnicas de beneficiamento industrial devem ser continuamente transformadas, A cada momento de transformação das condições técnicas, especialmente junto às usinas, unidades de beneficiamento ou produção de álcool e açúcar, um processo de centralização industrial encontro-se em jogo. Neste processo e por diversas formas, algumas das usinas são excluídas ou alguns usineiros (proprietários das unidades industriais) são expropriados da posição de empresário. Naturalizados como fundamento da modernização industrial e do progresso, esse processo de centralização das unidades de benefiamento da cana-de-açúcar, embora implicando em desemprego para os trabalhadores e em exclusão de outros agentes complementares desta produção agroindustrial, tendem a ser absorvidos sem explicitação pública dos conflitos que lhes são subjacentes” (NEVES, 1995)
“Quando o governo parou de incentivar essa produção as usinas quebraram. Seus donos deram no pé, com todo o dinheiro que sobrou, deixando os trabalhadores sem receber seus direitos. Desempregados, abandonados à própria sorte, alguns foram para a cidade. Esses acabaram vivendo nas favelas que aumentavam a cada dia. Outros sobreviviam de serviços no campo que por ora apareciam. Nesse período a pobreza fez casa. Entre 1996 e 1997, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) entra na região, com um trabalho de “formiguinha”, a fim de conscientizar e
Assim como em outras regiões do país, a Região Norte Fluminense – Região Canavieira – foi submetida às mudanças tecnológicas introduzidas pelo capital no campo e teve por característica a subordinação da agricultura à industria, a proteção dos interesses das oligarquias agrárias e a violação dos direitos dos trabalhadores. A modernização agrícola, como ficou conhecido este processo de transformação nas relações técnicas (e de poder) na cana promoveu mudanças significativas no processo de trabalho, que por um lado, fez acompanhar pela eliminação das formas tradicionais de trabalho, caracterizadas pelos “colonos” e “moradores”, e por outro, contribuiu para a formação do trabalhor livre e temporário na região, consequencia da onda da expansão/transformação técnica posta em prática pelos usineiros e grandes fornecedores (ALMEIDA, 2000; NEVES 1997).
Dadas as novas condições técnicas – intensificação da mecanização, adensamento das unidades de processamento, verticalização da produção – a possibilidade real de expansão das atividades agrícolas levou os usineiros e grandes fazendeiros a incorporar toda a área de terra disponível com a cultura da cana, iniciando um duplo movimento de concentração fundiária e de expropriação de trabalhadores e camponeses, que irá se estender por toda a decada de 1960 e “mais precisamente a partir de 75, com o lançamento do Pró-Álcool (Programa Nacional do Alcool), esse movimento de expulsão do trabalhador rural do campo se acentua ainda mais, chegando a atingir um êxodo rural em torno de 50.000 pessoas nas décadas de 60 e 70 no município de Campos e de 16 milhões em todo o Brasil (IBGE, 1980 apud ALMEIDA, 2000).”
A este processo culminou todo um movimento de deslocamento de contingentes populacionais precarizados e vulnerabilizados para as cidades da região, a que, diretamente se fez pela ocupação e crescimento das periferias urbanas, bairros e distritos por parte destes trabalhadores. A vida precária e sem perspectivas acabou por transformar este contingente de pessoas em trabalhadores livres, em força de trabalho disponível. A luta pela sobrevivência, agora no mundo urbano foi encurralando, compulsoriamente estes trabalhadores e assim passaram novamente, neste “limiar da vida” a ser “arregimentados para o corte de cana como “volantes” ou “bóias-frias”, sempre intermediados pela figura do “empreiteiro” ou do “gato”, como é denominado pelos próprios (ALMEIDA, 2000).
Esta condição subalternizada – a qual se coloca pela perda da moradia, da roça, da terra, dos meios de vida e trabalho – irá obrigar, pouco a pouco os trabalhadores a buscarem novas formas de trabalho, já que o “morar na cidade” se constituiu numa experiência de sofrimento e de constantes violações. A desqualificação destes sujeitos, ao qual se curvaram a todo e qualquer tipo de trabalho, já que os setores da economia urbana eram incapazes de absorverem este contingente fez leva-los à condição “clandestina”, informal, com poucas ou nenhuma possibilidade de ascenção social devido aos baixos salários, promovendo uma corrida pela sobrevivência por algum ou nenhum salário.
Se por um lado, a desqualificação e marginalização destes trabalhadores volantes (boias frias) recolocou novas contradições ao processo de modernização agrícola, ao que figurou na condição de proletarização, este cenário abriu, por outro lado um espaço de emergência para novas relações e possibilidades contrárias a esta lógica. É que a centralização/adensamento industrial (NEVES, 1995) movida pelas mudanças técnicas acabou acarretando uma concentração de capitais e uma dinâmica intensa de concorrência entre os fazendeiros/usineiros, processo que pouco a pouco confrontou “interesses contraditórios entre os seus supostos beneficiários, (e) teve como um dos desdobramentos a expropriação de capitalistas”. (IDEM, IBIDEM). A “pura concorrência intra classe” no interior da região permitiu que as maiores usinas pudessem incorporar as menores, num processo de concentração e centralização, haja vista que a concorrência das usinas de São Paulo e os ganhos tecnológicos e produtivos daquelas, fizeram na região uma verdadeira “seleção” de usinas, deixando as mais obsoletas e menores ao relento do mercado. Isso deixou a figura do usineiro desmoralizada, visto que as menores usinas tiveram que demitir grandes contingentes de trabalhadores sem garantias trabalhistas, o que associou o patrão a um mau administrador, a um gestor irresponsável “no momento em que ele se desobriga da sua função de provedor e abandona os seus trabalhadores à fome e à miséria” (NEVES, 1997 apud ALMEIDA, 2000).
O impacto desta centralização industrial das grandes usinas – ou dos engenhos centrais (NEVES, 1997) – foi tão significativo que, no início da década de 1980, “6 usinas foram fechadas e suas qüotas de produção transferidas para as demais que permaneceram em atividade. Contudo, das 14 usinas que permaneceram em atividade, mais três foram excluídas durante a década de 1980” (IDEM).
“Sem poder contar com o velho protecionismo do Estado, que também enfrentava uma grande crise financeira que vai se acentuar consideravelmente na década de 80, a chamada “década perdida”, a Região Canavieira de Campos é obrigada a se ajustar as novas imposições econômicas do mercado globalizado e da concorrência letal que ocorre no interior das frações dominantes, concorrendo também para o processo de “expropriação de capitalistas”(...) As metamorfoses operadas desde a década de 70, que reduziram drasticamente o período de trabalho na lavoura, o fechamento de mais de uma dezena de usinas, fruto da política de concentração industrial, e ainda, a redução da área cultivada com cana, vão produzir uma forte redução da oferta de emprego ligado à cana, sobretudo, daquele ligado às Unidades Industriais.” (ALMEIDA, 2000).
O processo de desqualificação dos antigos trabalhadores rurais patrocinado pelas inovações técnicas e que vai transformá-los em simples trabalhadores braçais livres e disponíveis para qualquer trabalho desqualificado, converte-se num elemento decisivo no processo de intensificação da precarização da força de trabalho na Região Canavieira de Campos, na medida em que possibilita o ingresso de mulheres, crianças e idosos que buscam alternativas à complementação da tão pequena renda familiar (ALMEIDA, 2000).
Foto 2: Corte de cana nas terras da Usina Santo Antonio, década de 50, Campos dos Goytacazes (Fonte: Instituto Historiar)
Houve, entre outras coisas um descompasso entre a elevação da capacidade de moagem do Parque Industrial Fluminense (elevado a 16 milhões de toneladas de cana) e a expansão das lavouras, fato que culminou na ociosidade da estrutura produtiva da região e na redução drástica de postos de trabalho, inclusive na entresafra, gerando “a clandestinidade dos vínculos trabalhistas e a intensificação do processo de exploração da força de trabalho” (ALMEIDA, 2000). Fatores como a reduçao dos preços do metro colhido da cana e a dimunuição dos subsídios do Estado ao setor também foram elementos importantes no período.
Isso permitiu com que os trabalhadores reinterpretassem o processo de falencia das usinas, pois “a condição de abandonados pelo patrão lhes fornecia a justificativa necessária para que eles brigassem judicialmente pelos seus direitos e posteriormente pela terra do seu antigo patrão, lhes permitindo romper com o sistema tradicional de regras, valores, obediências e hierarquias ao qual se mantiveram vinculados todos esses anos” (IDEM, 2000).
Todo este processo foi decisivo para a organização política dos trabalhadores da cana na região, sobretudo porque as massas falidas já estavam a anos sem pagar os salários e alguns benefícios, como o deslocamento para as fazendas. A crise que se instala no setor, corroborada pela “ausência do Estado”, com o fim dos incentivos do Pro-Alcool vai culminar na greve dos canavieiros, na década de 1980, momento em que se dispara uma série de dissídios (acordos trabalhistas), mas também de ações coletivas contra os patrões que continuavam a negar os direitos dos trabalhadores. O protagonismo do movimento sindical na região, a exemplo do Sindicado dos Trabalhadores Rurais de Campos foi fundamental na mediação política e na cobrança dos direitos violados, como foi o caso das terras da Usina Novo Horizonte, no município de Campos (ALMEIDA, 2000). Neste caso, após a luta política dos trabalhadores a ela associados para o pagamento dos salários e a confirmação da falência da usina, em 1985, “a unidade agrícola, correspondente a 4.500 ha aproximadamente, foi expropriada pelo Estado em 1987 e incorporada como recurso a ser redistribuido a partir dos objetivos da política de reforma agrária” a 350 famílias, sendo a maior parte delas de antigos trabalhadores da usina falida (NEVES, 1995). A experiência de Novo Horizonte, mediada pelo Sindicato dos Trabalhadores de Campos irá funcionar como um elemento de “desnaturalização” das relações de dominação e mando, criando no imaginário dos trabalhadores que a luta pelos direitos trabalhistas é legítima, justa e necessária, e que o “patrimônio da usina falida” é um direito coletivamente construído pelos trabalhadores e a eles deve pertencer.
É neste cenário de transformação, ajustes e precarização das relações de trabalho e das condições de vida que a dinâmica canavieira na região irá revelar as possibilidades e contradições do processo de centralização industrial, que por um lado serviu para selecionar os grandes engenhos simultaneamente à falência dos menores, deixando para trás um enorme estoque de terras ociosas, degradadas e improdutivas; e de outro lado, para o aumento de trabalhadores precarizados, desempregados ou clandestinos, sobretudo nas cidades e periferias urbanas. Isso será, mais tarde, já na década de 1990 as principais motivações para a emergência de novos conflitos agrários, agora não somente pela luta pelos direitos trabalhistas violados pelos patrões, mas antes de tudo, pela reforma agrária, pela democratização e acesso a terra das antigas usinas falidas. É neste momento, que a Região Norte passa a ocupar um lugar de destaque no enfrentamento da questão agrária no estado, pois além de concentrar os maiores latifúndios do estado, viu-se pela primeira vez o enorme e secular poderio do latifúndio canavieiro ser enfraquecido (ALENTEJANO, 2008).