Da década de 1950 a 1980, a terra da comunidade Tauá era comum, não tinha loteamento individualizado, todas as famílias podiam fazer uso da terra onde quisessem. Muitos migravam dentro desse território, colocavam roça por um tempo num lugar e depois mudavam deixando a terra descansar. A terra não tinha um dono,mas,já havia boatos de um criador de gado chamado de Justino Medeiro,que se dizia dono da Fazenda Tauá, ele morava no Rio de Janeiro e ninguém o via por lá.
O território comum, sofreu transformação com a regularização fundiária realizada pelo Grupo Executivo de Terra do Araguaia Tocantins (Getat). E, por se tratar de uma terra da União, que está entre o limite de 100 km da Rodovia Federal BR 153, em 1984, o Getat arrecadou a área que corresponde a 17.735,000 hectares. Mas titulou apenas 5.779hectares em forma de lotes individualizados, restando 11.956.0196 hectares de terras da União, ocupados pelas famílias que não tiveram acesso ao título.
O processo de titulação, que poderia ser uma forma de garantia da permanência das famílias na terra, não garantiu, ao contrário, facilitou para o grileiro pressionar individualmente cada proprietário a venderem seus lotes.
A década de 1990, para as famílias posseiras, significou a chegada do desassossego, pois apareceu Emilio Binotto e seus familiares na região(são pessoas que residem em Lajem/SC). Assim, segundo os moradores (as),quando ele apareceu na região, já trouxe consigo várias máquinas para trabalhar a terra, e logo que conseguiu expulsar o primeiro morador, começou a desmatar para plantar soja.
A partir de então, os moradores titulados, começaram a ser pressionados, inclusive com uso da violência, como queima de casas e assassinato de animais. Amedrontadas, muitas famílias venderam suas terras para o grileiro, que sob a posse de alguns títulos, cercou outras áreas públicas que eram ocupadas por posseiros antigos. O depoimento de Dona Raimunda, posseira na Tauá desde de 1952, demonstra esse desassossego que as famílias vivem com a chegado dos Binottos:
Vem desse mundo a fora aí chegou dizendo que é dono, querendo me expulsar e eu aguentando toda a vida, passando enfermidade de pé firme, segurando na mão de Deus. Ameaças de pistoleiros na primeira vez, na segunda vez tocaram fogo, roças destruídas de trator, os animal foram tudo matado por ele, não tenho mais nenhum animal, o restinho que tenho está magro tocando birimbau. E aí estou nessa situação. [...] olha, meus filhos nasceram e se criaram aqui, eu sou do lugar. Para a gente ver a família da gente sofrendo, eu sofrendo, os meus filhos sofrendo [...]onde nasceram e se criaram, chega esse povo invadindo e diz que eu é que sou invasora, sem eles ter direito nenhum e eu sem direito de trabalhar. [...]Vocês estão vendo esse mutirão de gente, nasceram aqui também e estão querendo expulsar de qualquer jeito. Botaram veneno na água, passei três meses com a água envenenada parecendo esse papel aqui, isso para me envenenar, mas não envenenam, porque tenho de onde tirar outra água. Morreram os animais, galinha, pato, peixes do rio, pois passou três meses envenenada. Desmatou no arrastão da soja aí da frente, desmataram foi tudo, não ficou nada, mas eu não saio daqui, aqui é meu lugar. Se chegar a oportunidade de tirarem minha vida, pois vocês tiram bem aqui, pois não saio de maneira nenhuma[1].
O desassossego que as famílias se referem, não está relacionado apenas a violência física, patrimonial e moral, mas principalmente, a violência cultural que é praticada contra seus modos de vida. Desde a chegada desse grupo, as famílias tiveram seus espaços sagrados destruídos, interferidos de forma violenta pelo plantio da soja, como por exemplo o Cemitério (Campo Santo), conforme a figura:
Figura 3 Cemitério da Comunidade Tauá
Fonte: Santos (2018)
A grilagem da terra da Gleba Tauá, começou desde 1992. Mas a evidências indicam que é uma orquestração que vem de muito tempo, e suspeita-se que órgãos públicos e cartórios fizeram parte desse processo. Pois, o documento Peça Informativa SRFA 09, nº 01/2012, produzida por técnicos da Divisão Estadual do Tocantins de Regularização Fundiária da Amazônia Legal, atesta que a família Binotto e outros pessoas, compuseram um grupo para grilar a terra da Tauá. Produziram diversos documentos de cessações de direito, certidões de cartório e diversos cadastros no Sistema Nacional de Cadastro Rural do INCRA (SNCR) com informações indevidas a respeito das terras da Tauá.
O primeiro fracionamento do território tradicional, ocorreu em 1984, quando o Getat, arrecadou os 17.735,000 hectares e titulou algumas famílias de posseiros e oito grande áreas para pessoas residentes no Estado do Rio de Janeiro. Os dados constam, que os oitos grandes proprietários de títulos, desistiram e devolveram a terra para a União, ainda em 1984. Mas, em 17 de julho de 1992, apareceu a figura de um Militar da Reserva,como procurador desses oitos proprietários, que supostamente venderam 12.000 hectares à Euclides José Bruchi, pecuarista de origem do estado do Mato Grosso do Sul. Em 02 de setembro de 1992,esse pecuarista (que também era funcionário de Emílio Binotto, conhecido na região pelos posseiros como gerente da fazenda Santa Rosa), vendeu pelo mesmo valor 20.485.0916 hectares de terra da Tauá para quatro membro da família Binotto. O tamanho da terra vendida, ultrapassava o total da área arrecada pelo Getat, o que leva a entender, segundo o relatório do Terra Legal (2012) que existia indicio de fraude.
Com o interesse de regularizar a terra, para acessar autorização para desmatamento e financiamento nos bancos. Em 1996, os membros da família Binotto supostamente venderam 11.956.0196 hectares para outras sete pessoas que são parte do mesmo grupo. E, essas sete pessoas solicitaram a regularização fundiária individualmente, através de processos administrativos protocolados no INCRA, no ano de 1998, em 2002 e depois, em 29 de março de 2007, mas não tiveram êxito na regularização.
Então, os sete supostos proprietários entraram na justiça através de um único processo, nº 54400.000555/2007-52 requerendo 11.955,900 hectares da terra da Tauá.Todavia, mesmo sem regularização, os setes grileiros conseguiram durante todo esse tempo, a autorização do Instituto de Natureza de Tocantins (Naturatins) para desmatarem áreas e acessarem várias vezes financiamentos para a produção da soja.
No dia 23 de março de 2007, numa reunião realizada na sede da Comissão Pastoral da Terra, convocada pelo Ministério Público Federal (MPF) para tratar sobre as questões relacionadas aos conflitos agrários que resultou na abertura do Procedimento Administrativo nº 1.36.000.00256/2005-58/MPF. As famílias de posseiros da Gleba Tauá, denunciaram os casos de violências, dentre elas: a derrubada de casas; atentados com fogo para intimidar as famílias; impedimento dos moradores de colher os frutos do cerrado; desmatamento irregular das terras públicas; intimidação e pressão para que os posseiros vendessem ou desocupassem as terras. Denunciaram ainda, que existia indicio de fraude no Cartório de Registro de Imóveis de Goiatins, onde a família Binotto registrava as terras da Tauá.
Coincidência ou não,menos de um mês depois do cadastramento das sete áreas no SNCR, os técnicos do INCRA através da Ordem de Serviço INCRA/SR 26/TO, nº 68/07, de 09de abril de 2007, realizaram uma vistoria para fins de criar um assentamento na Gleba Tauá. O resultado da vistoria, apontou que 11.956.019 hectares estavam registrados em cartório no nome dos sete proprietários, mas que esses ocupavam 16.148,4644 hectares, restando área livre na Tauá apenas 1.586,535 hectares.
O laudo de vistoria apontou também, o desmatamento das cabeceiras dos rios e construção de barragens nos leitos de córregos para acumulação de água para os animais e implantação de pastagem artificial na Área de Preservação Permanente (APP) do Rio Tocantins. A vistoria também constatou, que Emílio Binotto é quem explorava a área de forma continua, nos respectivos lotes 141 a 147. No entanto, os técnicos fizeram todo o levantamento da área e das benfeitorias dos Binottos (para possível indenização) e ignoraram as famílias de posseiros. O laudo apresentado pelos técnicos do Incra, não fez menção ao conflito agrário, ignorou as famílias posseiras que viviam ali. Prejudicando seriamente as famílias camponesas. Assim, a ação judicial movida pelos sete grileiros, impediu o Incra de dar continuidade no processo de criação do assentamento até o ano de 2010.
Em 2009, os setes grileiros, fracionaram mais uma vez a terra da Tauá. Dessa vez,dividiram em quinze partes, com lotes menores de 1.200 hectares de maneira a enquadrar nos critérios da Lei de Regularização Fundiária 11.952/2009. A suposta venda dessas terras, totalizou R$ 173.000,00, saindo por R$ 14,00 o hectare da terra. E dessa vez, cadastraram essas quinze áreas no Programa Terra Legal, requerendo a titulação dos lotes (TERRA LEGAL, 2012). E, em 2010, as dezoito famílias de posseiros fizeram o cadastramento no Programa Terra Legal para regularizar suas áreas de posse. E nesse mesmo ano, os camponeses(as) passam a ser alvo da primeira Ação de Reintegração de Posse movida pelo grileiro.
Devido as inúmeras denúncias registradas em Boletins de Ocorrência e protocoladas nos órgãos públicos, foi publicada pelo MPF a portaria nº 39, de 24 de janeiro de 2011, com Procedimento Preparatório nº 1.36.000.000322/207-25, instaurado para apurar as denúncias de desmatamento na Tauá. Porém, apressados para resolverem o conflito na Gleba Tauá, o MPF, Incra SR26 e o Terra Legal, realizaram várias reuniões durante o ano de 2011, sobre o caso da Tauá. Em duas das reuniões, o objetivo era tentar convencer as famílias de posseiros, especialmente Dona Raimunda a assinar um acordo juntamente com os grileiros, de forma que ela, familiares e seus vizinhos, teriam suas terras reduzidas em lote de assentamento criado pelo Incra, e o Terra Legal regularizaria 8.400hectares para os grileiros. Nessa data, tanto o Incra como MPF, estavam levando em consideração apenas as informações do laudo técnico de vistoria de 2007. Na ocasião desse acordo, esses órgãos não consideravam as irregularidades dos processos requeridos pelos Binottos.
Como as famílias não assinaram o acordo proposto pelos órgãos. De 2011 para 2012, o conflito agrário intensificou, aumentando a pressão e a intimidação contra camponeses e camponesas. Dona Raimunda, uma das lideranças da comunidade e mais perseguida pelos Binottos, passou a sofrer ameaças de morte. Ela relata que dia 01 de maio de 2012, ouviu vários disparos de arma de fogo e a presença de pessoas estranhas de moto e carro circulando perto da sua casa. Na época, as famílias também denunciavam a conivência da Policia Militar (PM) de Barra do Ouro com os delitos do suposto fazendeiro.
Nesse período, foi criada a Delegacia Agrária ligada a Policia Civil, mas segundo os camponeses (as) não confiavam na equipe que ia a campo. Eles se sentiam inseguros e pressionados pelos policiais da Delegacia Agrária. Contudo, ainda em 2011, após diversas pressões das famílias junto ao MPF e a Ouvidoria Agrária Nacional, foi realizada uma segunda vistoria na Gleba Tauá, desta vez foi constatada no laudo de vistoria a existência de conflito na área. Foi relatado a presença dos camponeses (as) e suas posses tradicionais, bem como, foi constatado as irregularidades nos processos de requerimentos de regularização fundiária pelos Binottos. Depois disso, desencadeou-se várias investigações e operação da Policia Federal no Cartório de Goiatins, nas fazendas dos Binottos, para apurar a grilagem de terra, o que de fato foi comprovado. Mas os grileiros continuaram usufruindo da terra da Tauá e praticando violência contra os camponeses (as).
No ano de 2012, as famílias de posseiros sentiram mais apoiados pelo MPF, quando o procurador Wictor decidiu realizar audiência pública dentro da comunidade, para ouvir todos os camponeses (as) da Gleba Tauá e de outras comunidades vizinhas que viviam na mesma situação de conflito agrário. Na oportunidade, as pessoas da comunidade registraram denúncias de violências e ameaças provocadas pelos pistoleiros contratados pelos Binottos. Mais uma vez, os relatos destacaram as queimas de casa, destruição de roças, envenenamento de animais e ameaças contra a vidas das lideranças. Nessa reunião, estiveram presentes também pessoas atingidas pela Barragem de Estreito e pessoas sem terra do município de Barra do Ouro. Na ocasião, essas pessoas reivindicavam serem assentadas na Tauá, na área da União que não envolvia as terras dos posseiros. Naquele momento, muitos questionamentos foram apontados a respeito dessa questão do assentamento. Sendo fato, que em algum momento seria criado o assentamento. No entanto, algumas pessoas alegavam que era necessário primeiro esclarecer o processo de grilagem e resolver a situação das famílias posseiros, para então criar o assentamento.
Logo após reunião, ainda em 2012, as famílias sem terra do município da cidade de Barra do Ouro e do povoado Morro Grande, ocuparam a Tauá e começaram a fazer roças. No ano de 2013, esse grupo de ocupantes já se somavam 64 famílias. A ocupação da área pelos sem terra, configurou a retomada das terras. Pois, boa parte das pessoas ocupantes, são parentes dos posseiros que foram pressionados para venderem suas terras,alguns são filhos de posseiros antigos que ainda vivem na Tauá e outros são parentes dos camponeses (as) titulados pelo Getat.
No início, não tinha luta conjunta dos posseiros e ocupantes, mas com o passar do tempo e com a pressão violenta do suposto fazendeiro, as famílias se uniram em processo de luta e resistência. Passaram a somar força nos espaços coletivos de reuniões, mobilizações, Encontros de Camponeses e Camponesas realizados pela Articulação Camponesa e a CPT.
Figura 5 Mobilização na Ferrovia Norte Sul em 2016
Fonte: Arquivo CPT Araguaia-Tocantins
Como estratégia de resistência, em 2013, as famílias decidiram fazer a auto demarcação de suas terras. E com apoio técnico, fizeram croquis das posses individuais, representando suas ocupações antigas.
De 2014 a 2015, aumentou a pressão contra as famílias de posseiros e ocupantes. No final de 2014,através de uma ação judicial movida contra Dona Ieda, que também é uma das posseiras antigas, a despejaram juntamente com seus familiares e destruíram sua casa e plantações. Em 2015, o suposto fazendeiro move uma nova ação de reintegração de posse contra as famílias ocupantes através dos autos nº 0000810-14.2015.827.2720. E de forma bastante ágil, o Juiz da Comarca de Goiatins, atende a solicitação do procurador do grupo Binotto e expede a reintegração de posse contra posseiros e ocupantes.
Então, em novembro de 2015, ouve a tentativa de despejo das famílias. Durante a reintegração de posse, as famílias de camponeses e agentes de pastoral, reagiram em ato de protesto. Naquele momento, sete pessoas foram presas, entre elas, cinco agentes da CPT Araguaia Tocantins e dois camponeses. O despejo não se concretizou, porque o filho de Emílio Binotto, num ato de arrogância e ódio contra Dona Raimunda, destruiu sua casa, enquanto a Policia Militar realizava o despejo. E, em cumprimento das Diretrizes da PM/TO, que orienta sobre a realização de reintegração de posse, o comandante da operação suspendeu o despejo. Na época, esse fato repercutiu na mídia regional e nas redes sociais, inclusive com muitas manifestações de repudio contra o Juiz Luaton Bezerra[2].
A tentativa de despejo, causou muito mal-estar as famílias, mais resultou no fortalecimento da luta daquelas famílias. Eles receberam apoio dos Bispos do Tocantins através de cartas e através de celebração dentro da comunidade. As famílias também receberam apoio de parceiros e pessoas que se solidarizaram com Dona Raimunda para a reconstrução da sua casa através de mutirão. E ainda em 2015, as famílias receberam a notícia que as solicitações de regularização fundiária solicitadas pelo grupo Binotto foram indeferidas pela Subsecretaria de Regularização Fundiária na Amazônia Leal (SERFAL) e confirmado o indeferimento pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Em 2017, foi realizada a desintrusão, retomada de quatro áreas que estavam sob o domínio dos grileiros (Fazendas Conquista,Tocantins, Jurubeba e Valença) e foram criados dois assentamentos da reforma agrária (PA. São Pedro e PA. Rio Tocantins), mas ainda não foram regularizadas as famílias na área. Essa vitória, é bastante significativo para as famílias, mas não significa a solução do problema. Ainda continua pendente a situação das posses dos moradores antigos que o Terra Legal não regularizou e os restante das terras publicas que devem ser criados outros assentamentos.
[1]Depoimento de Dona Raimunda na audiência pública realizada em 2012.
[2]Vídeos que circularam na mídia e rede sociais sobre o despejo na Tauá :https://www.youtube.com/watch?v=KyX0PeMgbuo&t=28s; https://www.youtube.com/watch?v=tFCvTHU75Ic