A história desta população está diretamente associada com as lutas por terra e por acesso aos babaçuais, fonte de segurança alimentar e renda das famílias. A partir do final da década de 1980, houve, na região do extremo norte do Estado do Tocantins, um processo de reivindicação pela Reforma Agrária por parte dos representantes dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e dos movimentos sociais ligados à Igreja Católica. Além da reivindicação pelo direito à posse da terra, enquanto meio de sobrevivência para as famílias, esses atores lutavam para acabar com os conflitos pela terra na região. Diante desse cenário, as mulheres quebradeiras de coco babaçu também assumiram a luta pelo acesso a terra e pelo uso sustentável do babaçu.
Nos anos subsequentes, no início da década de 1990, emergiram, na Amazônia Brasileira, intensas mobilizações dos movimentos seringueiros para a criação de Reservas Extrativistas (Resex’s). Estas seriam a concretização das propostas dos extrativistas por meio de uma política pública específica de “Reforma Agrária” e proteção dos territórios e recursos naturais para as populações que moravam e utilizavam esses espaços. Na prática, a criação das Reservas Extrativistas representaria o acesso a terra e aos recursos naturais contidos nestes territórios. Neste sentido, Dona Raimunda (líder das quebradeiras de coco) também liderou a luta na região do Bico do Papagaio para que fosse criado esse tipo de território que permitiria garantir o uso desse espaço pelas famílias extrativistas. Naquele momento, essa preocupação era justificada em razão da recente criação do Estado do Tocantins, em 1988, que acirrava ainda mais os conflitos por terra (entre fazendeiros e população tradicional que explorava o babaçu) já existentes na região.
Essa mobilização acabou surtindo efeito e, em uma área com grande concentração de palmeiras do babaçu, entre a região de fronteira dos Estados do Maranhão e do Tocantins, possibilitou a criação de três Reservas Extrativistas: Mata Grande, Ciriaco e Extremo Norte do Estado do Tocantins, ambas no ano de 1992. Vale destacar que a criação dessas Resex’s, juntamente com a Quilombo do Frexal (Estado do Maranhão) e a Marinha do Pirajubaé (Estado de Santa Cantarina), aconteceu 14 dias antes do início da II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, evento conhecido mundialmente como Eco-92 ou Rio-92, realizado na cidade do Rio de Janeiro - Brasil, entre os dias 3 a 14 de junho de 1992. Neste momento, as discussões sobre questões ambientais, desenvolvimento sustentável e aquecimento global estavam pulsando com intensidade no mundo, principalmente no Brasil, em razão do evento supracitado.
Assim sendo, como forma de dar uma resposta ao mundo na Eco-92 e de relativizar os conflitos socioambientais internos no país, o governo brasileiro anuncia a continuidade na criação de territórios que tem o propósito de conservar o meio ambiente e de garantir o uso desse espaço para as populações tradicionais, conhecidos como Reservas Extrativistas. Este pronunciamento na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento mostrou que o país estava seguindo as diretrizes apontadas pelo Relatório de Brundtland, conhecido também como Relatório Nosso Futuro Comum, produzido em 1987. Este documento colocava como foco a definição do conceito de desenvolvimento sustentável como fio norteador das próximas discussões sobre meio ambiente e homem e, também, denunciava a maneira como o homem vinha tratando o meio ambiente.
Neste sentido, com a criação da Resex do Extremo Norte esperava-se que os conflitos fundiários na região fossem amenizados e que os direitos da população fossem garantidos, principalmente a concretização da regularização fundiária e o acesso a terra e aos babaçuais deste território. No entanto, passados mais de duas décadas da criação da Reserva Extrativista do Extremo Norte, o que é possível observar que a questão da regularização fundiária ainda é um desafio a ser rompido nesse território.
Embora a ocorrência disso, algumas explicações podem ajudar a entender a complexidade e os (des)caminhos da Resex do Extremo Norte. Primeiramente, o território criado era para ser a extensão do Assentamento Sete Barracas, mas isso não foi possível de ser concretizado, pois a distância de aproximadamente 75 quilômetros comprometeu o desenho elaborado de estes dois territórios serem apenas um.
Segundo, as famílias que seriam beneficiárias da Resex do Extremo Norte não tinham clareza de como era a modalidade de acesso a terra por meio da Reserva Extrativista, o que causou confusão a estas pessoas. Para muitos tal território seria uma espécie de assentamento rural de Reforma Agrária. Mas, como eles não entendiam os prós e os contras deste tipo de Unidade de Conservação, acabou que os representantes da prefeitura municipal de Carrasco Bonito e os fazendeiros repassaram informações distorcendo o que era uma Reserva Extrativista, e como, também as ameaças intensificaram, as famílias com medo do que poderia acontecer com elas chegaram à conclusão que a forma como se usaria este território não atenderia os seus anseios e, portanto, a criação desse espaço não satisfaria a demanda deles. Uma das falas da pesquisa de Sousa (2015, p. 41) pode ilustrar este acontecimento “esqueceram de dizer para as famílias das quebradeiras de coco que esse espaço era uma Reserva Extrativista, bem como os seus direitos e deveres sobre este território”.
Neste sentido, a dificuldade em compreender a conquista da Resex do Extremo Norte também foi diagnosticada na pesquisa realizada por Yohannes (2013). Isto é, tal autora expõe que, possivelmente, o processo de criação deste território teve etapas queimadas, ou seja, foi muito rápido o estabelecimento desta Resex o que acabou penalizando esse processo de compreensão pelas famílias. Ainda sobre esta questão, a mesma autora acredita que o objetivo da criação das Reservas Extrativas, especialmente a Resex do Extremo Norte, tenha sido mais a intenção do governo brasileiro apresentar um posicionamento em relação à conservação do meio ambiente junto aos países participantes da Eco-1992, uma ação que contribuiria para melhorar a imagem do Brasil no mundo.
Diante deste contexto, a confusão do que seria de fato a Resex do Extremo Norte por parte das famílias e o interesse do Estado em anunciar sua existência na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento contribuiu ainda mais para o aumento dos conflitos ocorridos entre população tradicional e fazendeiros dessa região. Isto se intensificou em razão dos fazendeiros acreditarem que não seriam indenizados com o valor correto de suas propriedades e benfeitorias e pela possibilidade de encerrarem suas atividades pecuárias naquela região. Este cenário trouxe mais lenha na fogueira do debate contra a desapropriação e a regularização fundiária desta Resex.
Sobre a resistência dos fazendeiros é importante destacar a forte influência política em Brasília que esse grupo tem. Assim, a partir do momento que foi instaurado o Decreto de criação da Resex do Extremo Norte este grupo passou a fazer lobby, no sentido, de buscar aliados para que cancelassem este documento. A legislação que criou esta Unidade de Conservação, em seu art. 2º do Decreto, trazia a seguinte redação:
O Poder Público deverá proceder às desapropriações que se fizerem necessárias e, nos termos do art. 4º do Decreto nº. 98.897, de 30 de janeiro de 1990, a outorga dos contratos de concessão de direito real de uso à população com tradição extrativista. Parágrafo único. Caberá, ainda, ao Poder Executivo, a permanente gestão no sentido de assegurar a eficaz destinação da área descrita no art. 1º deste decreto (BRASIL, 1992).
Diante disso, os fazendeiros, se aproveitando desse apadrinhamento político, fizeram intensa propaganda negativa sobre o que era a Reserva Extrativista, utilizando, inclusive, de artifícios de pressão junto às comunidades, como, por exemplo, proibindo as mulheres de irem quebrar coco nos babaçuais e impossibilitando os homens de colocar roçados nas suas terras, o que impactou os meios de vida dessas famílias que tinha como base socioeconômica a extração do babaçu, o cultivo da agricultura e a criação de animais de pequeno porte. Essa medida tinha o claro objetivo de fazer com que as famílias desistissem da continuidade da existência da Resex do Extremo Norte.
Com apoio de políticos de Brasília e, também, em níveis municipal e estadual, essa mobilização por parte dos fazendeiros ganhou força e conseguiu a todo custo retardar a efetivação da Reserva. Essa realidade trouxe um custo muito alto para as famílias extrativistas, pois, na verdade a Reserva só existe no papel por meio do Decreto no. 535, de 20 de maio de 1992. Sobre essa realidade a fala do entrevistado coletado na pesquisa de Sousa (2015, p. 43) retrata a dificuldade no apoio político que as famílias têm para que este território saia do papel.
(...) o apoio político a gente não tem. Nem em nível estadual e nem em nível municipal. Todos os prefeitos que entram são contra a Reserva. Porque são os fazendeiros que patrocinam as campanhas deles. Então, se eles [prefeitos] ficarem a favor da Reserva, no outro ano os fazendeiros não apoiam eles [prefeitos]. Aí todos [prefeitos] que entram, na hora de pegar o apoio nosso, eles falam que apoiam a Reserva na nossa frente, mas na hora que ganha, nem senta com a gente para conversar sobre a Reserva. [...] Brasília a gente também não conseguiu muita coisa, a gente não conseguiu avançar. Na época que era o presidente Lula [Luiz Inácio Lula da Silva] no primeiro mandato e que a Marina era do Meio Ambiente [Marina Silva, ministra do Meio Ambiente], a gente achava que ia ter sucesso. Mas não tivemos. Não saiu nada do papel.
O depoimento supracitado aponta a complexidade em relação ao acesso do território da Resex do Extremo Norte pelas famílias extrativistas, demonstrando que quem tem o poder sobre este espaço são os fazendeiros que possuem forte influência política. Essa fala possivelmente nos ajuda a entender, que se passado mais de duas décadas de criação da Resex do Extremo Norte, o motivo das famílias ainda não viverem neste território e, também, a razão do processo de regularização fundiária não ter ocorrido.
O fato é que a Resex do Extremo Norte tem mais de vinte anos de existência e, até então, o Estado não havia regularizado a questão fundiária, o que resultou no fato de que as famílias das quebradeiras de coco não têm a garantia de extração do babaçu e, tampouco, o acesso a terra deste território. Percebe-se, então, que a não efetividade da atuação do Estado permitiu que as demandas existentes das populações tradicionais não fossem atendidas. Por três vezes tentaram realizar o processo de regularização fundiária, no entanto todas às vezes foram boicotados em função de manobras dos interessados.
Outra questão observada por Sousa (2015) e Yohannes (2013) foi que por muitos anos as famílias não sabiam as delimitações do território da Resex do Extremo Norte. Somente em 2012 que o trabalho de demarcação dos limites ocorreu, colocando vinte sinalizações no seu perímetro. Para Yohannes (2013), as sinalizações dentro desta Unidade de Conservação representaram, pela primeira vez, a presença física da existência da Reserva Extrativista. Uma das falas da pesquisa de Sousa (2015, p. 94) confirma o que Yohannes (2013) constatou.
Pensei que, agora, eu ia ter a minha terra. Eu pensei assim: Ai, meu Deus, agora que colocou uma placa da Reserva Extrativista, será que cada pessoa que tem grande necessidade de trabalhar do jeito que a gente trabalha de quebrar coco, de lavradeira [trabalhar na roça]. Será que a gente alcança ganhar um pedacinho de terra pra gente mesmo governar e ficar dizendo que aquele pedacinho é da gente, embora seja cinco linhas. Mas também eu já fico satisfeita pelo resto da minha vida por nós ter avançado na carreira.
Este depoimento demonstra o sentimento que a placa “Reserva Extrativista do Extremo Norte do Tocantins”, ver Figura 1, trouxe para as famílias que anos estão a espera para ter o acesso a terra. Também pode perceber que é neste momento das sinalizações no território da Resex que o Estado mostra para a população que aquele espaço é uma Reserva Extrativista, ou seja, é o Estado confirmando para a sociedade sua responsabilidade por aquele local e pela população tradicional local (as famílias das quebradeiras de coco).
É importante destacar que a extração do babaçu é bastante relevante na vida desta população, uma vez que dele se obtém alimento, renda e, ainda, sua utilização na construção das casas ali existentes. Vale ressaltar também que, mesmo com as dificuldades impostas pelos fazendeiros, as famílias ainda continuam fazendo a extração do babaçu, porém em menor quantidade. O que se percebe é que esses anos de indefinição da efetivação da Resex do Extremo Norte têm trazido consigo diversos problemas, uma vez que a falta de regulamentação e fiscalização suficiente permite o aumento do desmatamento dos babaçuais para a expansão da pecuária. Além disso, deixa uma importante fonte de renda e o acesso a terra nas mãos dos fazendeiros em detrimento das famílias tradicionais.
A fiscalização de cerca de 9.280 hectares é realizada por um único funcionário do ICMBio e isso acontece desde de 2007, pois antes não existia sequer algum servidor responsável pelos trabalhos nesta Unidade de Conservação. Já a regulamentação ineficaz se dá através da inexistência de regimento específico que delimite data, local e forma para o uso deste território. Outro fator relevante é a falta de conhecimento dos direitos adquiridos por parte da população tradicional, o que facilita a postergação da solução por parte dos fazendeiros interessados. Além disso, o apadrinhamento político destes fazendeiros faz com que o processo de desapropriação das terras não saia do papel. Para Yohannes (2013), esta relação entre fazendeiros e políticos de nível de alto escalão vem prejudicando a consolidação da Resex do Extremo Norte, pois esse apadrinhamento dos políticos aos fazendeiros dá cobertura para que ocorram desrespeito e intimidação da atuação do Estado neste território.
Por fim, a experiência desse conflito mostra que o Estado faz um papel paradoxal, ora fica do lado dos fazendeiros e não resolve a regularização fundiária da área da Reserva, ora executa o papel de regulador do conflito, fiscaliza o território desta Unidade de Conservação e acua os fazendeiros com advertências e multas àqueles que não fazem o uso ambientalmente correto das propriedades. Mas o que é certo é que, passados mais de vinte anos da criação da Resex do Extremo Norte, o fim desse conflito ainda está longe de ser resolvido.