A comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira fica no município de Costa Marques, Estado de Rondônia/Brasil. Abrange a extensão de 20.108,8709 hectares em plena região amazônica.
Forma parte desses territórios chamados de “Negros do Guaporé” constituídos a partir de distintos processos de territorialização, desde o século XVIII na linha de fronteira entre Brasil e Bolívia, no vale do Rio Guaporé, conhecido como Rio Iténez na Bolívia. Delimitados por antigos sítios e colocações de seringa, áreas de roçado, pesca, entre outros sítios históricos, como o próprio local da antiga Vila de Conceição e o Forte Príncipe da Beira.
Desde 05 de setembro de 1754, ofícios apontam que esses quilombos estavam localizados tanto do lado português, quanto do lado castelhano, sendo o mais famoso o Quilombo do Piolho, ou do Quariteré, liderado por Tereza de Benguela, no igarapé do mesmo nome, na atual divisa de Rondônia e Mato Grosso.
Mapa elaborada pelo Projeto de Nova Cartografia Social da Amazônia com a associação quilombola do Forte Príncipe da Beira. Foto: ASQFORTE
Tais processos remetem ao período colonial e a ação bandeirante em busca de riquezas, ouro e pedras preciosas, em exploração desde a década de 1730 pelos mineiros de Cuiabá e São Paulo e confirmada posse portuguesa com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, após o qual as Missões indígenas jesuíticas castelhanas de indígenas abandonaram o lado direito do rio Guaporé e passaram ao lado da atual Bolívia.
Georeferenciamento 12.365330 -64.397667.
CLASSIFICAÇÃO DO CASO
A primeira notícia do local, ao lado direito do Rio Guaporé é uma missão jesuítica de indígenas Moré, que foi abandonada após o Tratado de Madri de 1750. À construção do Forte deve-se em parte a chegada da população negra na região, por causa das minas de ouro de Vila Bela, e a disputa do território pelos portugueses, com a construção duma fortaleza no local da comunidade. O avanço da colonização portuguesa e as iniciativas de militarização da fronteira resultaram na política de fortificação do Guaporé, passando a ser construído pelos portugueses o Forte de Nossa Senhora da Conceição, que logo passa a se chamar Forte de Bragança. Este primeiro local da fortaleza foi abandonado após uma alagação e nova construção foi iniciada nas proximidades na localização atual do Forte Príncipe da Beira. Existem relatos que, em 1743, neste local existia uma senhora negra que se chamava Ana Moreira, ela era dona de muitas cabanas, mas foi expulsa pelo engenheiro Domingos Sambucetti, responsável pela construção do Forte Príncipe.
“Hoje, 235 anos depois querem fazer a mesma coisa com a comunidade. Esquecendo-se dos valores morais, da dignidade humana. Desrespeitando todos os limites dos direitos humanos. Constrangendo esta comunidade com todos os tipos de humilhação”. (ELVIS PESSOA, presidente da Associação Quilombola do Forte)
O poder colonial impôs políticas de ocupação, trabalho escravo e militar, escravizando negros e indígenas na construção da fortaleza. Isso ocasionou o surgimento de “novas coletividades”, entre elas há notícias de grupos quilombolas instalados nas redondezas. Depois do fim do ouro o Vale do Guaporé, considerado insalubre, foi abandonado pelo homem branco e se converteu em território onde os negros viviam em liberdade, muito antes da Lei Áurea ser aprovada.
Existem notícias que o Forte passou a ser comandado como presídio por homens de cor, pelo menos até 1830, porém acabou sendo totalmente abandonado pelas autoridades e a vegetação tomou conta de suas dependências ameaçando a integridade da edificação. Mesmo assim, a comunidade de origem afrodescendente, que chegou para sua construção, continuou morando sem interrupção na região do Forte Príncipe e na área do antigo Forte de Conceição.
A fortaleza somente foi “redescoberta” pelas autoridades no século XX: Em 6 de julho de 1913, o Forte foi visitado pelo Almirante José Carlos de Carvalho e em 1914, pela comissão que dirigia o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), que ordenou a limpeza da mata que invadia suas dependências. Rondon só retornou em 1930 e instalou mais tarde no local um batalhão de fronteira, até que em 1940 foram construídas as primeiras instalações do atual quartel militar. “No entanto, a área já estava habitada. As famílias que residiam eram descendentes dos escravos negros e indígenas que trabalharam na construção da fortaleza. A ocupação da área abrangia até a antiga Fortaleza de Conceição (Forte de Bragança), onde, segundo dizem os quilombolas, “só existiam negros”. Nesse lugar, lembra Mendes (1999), viveu o mestre Anacleto, um líder negro local”. EMMANUEL DE ALMEIDA FARIAS JUNIOR.[1]
Testemunhas atuais, como Dona Dormalina, relatam que antes do retorno do exército sempre houve uma numerosa comunidade negra, descendentes dos antigos escravos e remanescentes dos quilombos estabelecidos no lugar: “Meu pai era praça de Rondon e sempre disse que quando chegou já tinha muita gente morando aqui”.[2] Porém também há relatos que o gado bovino, trazido como as instalações militares, passou a destruir frequentemente as plantações. A população de Conceição, na localização do antigo Forte de Bragança, era na década de 1950 numa das principais vilas da região, contando com cartório e com aeroporto, até os moradores serem expulsos pelos militares na década dos anos 70, restando apenas os moradores localizados no Forte Príncipe da Beira.
A população que mora no local foi reconhecida como comunidade quilombola no dia 19 de agosto de 2005 pela Fundação Palmares e a localidade foi declarada Distrito do Município de Costa Marques. Porém o Exército sempre resistiu a reconhecer a identidade quilombola da comunidade e seus direitos, sendo a área considerada sobre controle militar, e os moradores sofrem retaliações há décadas.
Foto: Intento do Exército de cercar o acesso a entrada ao porto e a Fortaleza, julho de 2015. Foto: MPF-RO / Arquivo da CPT – Rondônia
Assim as últimas décadas as famílias quilombolas têm sofrido constantes pressões, para que saiam da área pretendida, pelos diversos Pelotões militares que já atuaram na região. A intrusão das terras tradicionais pelo Exército, as pressões e os atos de violência têm impedido a ocupação plena do território quilombola, como a realização das práticas agrícolas, da pesca, de turismo, a construção e reforma de moradias, o acesso ao porto do Rio Guaporé, o acesso à educação e à saúde sem constrangimentos.
Em 2012 houve a proposta do Procurador do MPF Daniel Fontenele de realização de um Termo de Convivência entre Exército e Comunidade, porém estes sempre se recusaram a reconhecer a identidade quilombola da comunidade e a permitir a entrada do INCRA para realizar o estudo antropológico sobre o território tradicional da comunidade. Apenas houve uma proposta de Contratos de Concessão de Uso (CDRU) individuais, que após estudo da comunidade foi rejeitado. Com a continuação da situação social de conflito a reivindicação territorial dos quilombolas foi judicializada. Em 28/11/2014 o Ministério Público Federal moveu uma ação pública contra o Exército e o INCRA para que fosse realizado o Relatório Territorial de Identificação e Delimitação - RTID, previsto em Lei.
Atualmente, esta comunidade configura como um território tradicional de caráter determinante a permanência na posse com a finalidade de agroecologia, extrativismo e proteção cultural. O momento decisivo para a comunidade aconteceu entre os anos 2011-2012 com a elaboração do mapa do território tradicional da comunidade quilombola.
O fascículo “Mapeamento Social” que fez a cartografia social da Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira, tem como objetivo informar a população local sobre gestão territorial contra desmatamentos e devastação florestal. Este mapa serviu para unificar a comunidade e fundamentou a rejeição de uma proposta restrita de concessão de uso individual para as famílias da área. A então presidente da AsqForte, Florinda Junior dos Santos, mais conhecida como dona Dadá, destacou em sua fala a importância do resgate de memória da comunidade e a divulgação do fascículo. Estamos passando por muitos problemas, principalmente com o Exército Brasileiro, que quer impor um acordo de convivência de cima para baixo. Hoje a maioria da comunidade vê na realização na realização do Relatório Oficial de Identificação Territorial (RTID) como o caminho a seguir para o pleno reconhecimento do território quilombola.
[1] Emmanuel de Almeida Farias Junior, Negros do Guaporé o sistema escravista e as territorialidades específicashttps://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/1467
[2] Testemunho dado em assembleia da comunidade em presença do procurador do MPF, Dr Henrique Heck, e o prefeito de Costa Marques, Chico Território, em 28 de agosto de 2013.