A comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira está formada por afrodescendentes remanescentes dos antigos Escravos do Rei, levados pelos portugueses à beira do Rio Guaporé, na atual divisa de Brasil e Bolívia, para construir uma fortaleza, no século XVIII.
Tanto a movimentação militar com a perseguição aos quilombos, quanto o abandono da região pelos bandeirantes após a decadência das minas, ocasionaram o espraiamento do domínio negro no Vale do Guaporé. Pode?se dizer que chegaram mesmo a estender por áreas circunvizinhas das fortificações militares. A comunidade permaneceu sempre no local até receber novamente o batalhão militar em 1935.
Mesmo com os traços e a história de ancestralidade negra, o Exército e outras autoridades recusavam considerar a identidade afro descente: Vivemos com descaso das autoridades de reconhecer nossa comunidade como quilombola. Eles não respeitam, não reconhecem, falam na nossa cara que a gente é boliviano, que a gente é nordestino, que a gente é qualquer coisa menos quilombola. Eles não respeitam nossa história, nossos antepassados, quem construiu isso. Eles falam que a gente é branco, amarelo, azul, de qualquer cor mas não é preto. Primeiro que tem negro aqui sim e segundo que a gente não precisa ser preto pra ser quilombola. É claro que com o passar do tempo teve mistura, teve casamento com gente de fora, e isso é normal. A gente é quilombola não só pela cor da nossa pela, mas pela nossa história, pelo nosso passado, pelos nossos antepassados que foram escravos, que construíram isso aqui e que sempre mantiveram isso aqui. Somos remanescentes de quilombo sim, sendo preto na pele ou não. A Fundação Palmares já reconheceu a gente, a gente tem certidão, a gente tem história, e a gente é quilombola quer o Exército queira ou não queira. (Mary Nascimento, professora)
O Exército praticou todo tipo de retaliações: Exerceu controle na construção e reforma de moradias, no uso de escola e infraestruturas, no plantio de roças, nas atividades turísticas, na pesca, no extrativismo vegetal, etc. Assim como aconteceu coma antiga Vila de Conceição, famílias que residiam na comunidade Forte Príncipe da Beira passaram a ser acuadas e pressionadas a deixarem suas terras tradicionalmente ocupadas.
Segundo moradores, após a implantação de gado do exército em Conceição a comunidade começou a se dizimar. Antes disso era fácil plantar arroz, mas depois o gado comia a roça do povo! Afirmar Dona Francisca da Gloria. Essa foi uma estratégia do Exército para imprensar o povo quilombola que morava ali.
Acesso interditado ao porto civil da comunidade no rio Guaporé, 2017.
Foto: Asqforte / Arquivo da CPT – Rondônia
Sob pressão do MPF, o Exército tentou uma norma de convivência abusiva para a comunidade assinar. Segundo Amaury Arruda isso é um absurdo. A comunidade que já é submissa. Essa norma de convivência é uma armadilha profunda. No momento que assinarem, vão coibir com respaldo nas normas para perseguir os moradores. Atualmente as famílias já estão tolhidas do direito de plantar e de colher, mas de qualquer forma desobedecem plantam mesmo assim. E depois? Questiona Arruda.
Nas publicações da CPT RO e na cartilha da Nova Cartografia Social da Amazônia há registros do aumento das pressões e atos de violência contra a Comunidade Quilombola. Unidades familiares têm sido impedidas de praticarem as atividades agrícolas. Homens presos por estarem fazendo roça, apreensão de um trator, a atividade de pesca tem sido exercida sob o rígido controle do Exército, que institui normas próprias de fiscalização, inclusive sobre o pescado obtido para consumo. O Exército tem proibido o embarque e desembarque das famílias quilombolas que utilizam veículos no porto. Quatro pescadores tiveram suas casas invadidas, peixes retirados dos freezers, além de serem presos e levados para o Ibama.
Casa queimada pelo Exército do seringueiro “Perna de Abelha”, novembro 2008.
Foto: Pe. João Picard /Arquivo da CPT – Rondônia
A escola construída pelo Estado para à comunidade foi cercada dentro do perímetro do quartel do Exército, dificultando o acesso dos alunos, professores e a própria comunidade. Um intenso processo militar que isola a comunidade do dia a dia da escola. Os militares passaram a exigir a apresentação de um documento com foto para que as pessoas tivessem acesso à Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio “General Sampaio”, inclusive os pais de alunos e professores. A escola e quadra da comunidade foi cercada pelo aquartelamento, os servidores estaduais que atuam na escola e os alunos vêm sofrendo constantes constrangimentos. Um professor chegou a ser retirado da sala de aula por militares armados diante dos estudantes. Após o incidente os professores chegaram a parar o funcionamento da Escola.
Em 2009 a família de um casal de seringueiros, ele quilombola, ela indígena cojubim, foi expulsa pelos militares do 1º Pelotão de Fuzileiros de Selva Destacado e sua casa foi incendiada, quando estava provendo a alimentação suficiente para manter os trabalhadores para coleta da castanha.
O sistema de comunicação da comunidade ainda é muito precário. A única comunicação eficaz é o acesso à internet. A comunidade carece também de um sistema de água tratada, posto de saúde, os atendimentos são feitos pela enfermaria do pelotão, que é mantida com um acordo com a Prefeitura. São muitas humilhações, afirmam que não são obrigação deles, mesmo assim eles estão atendendo.
Há relatos de trabalhos de parto que salvaram mães e filhos. Além dos partos, pessoas da comunidade faziam remédios caseiro, rezava para vários tipos de doenças, como quebranto, mal olhado, vento caído, vermelha, dor de cabeça, dentre outros. Pessoas abençoadas que gostam de cuidar das mulheres e crianças. Afirma Cristiane Açaiague da Paz.
“A comunidade sempre realizou eventos comunitários, mas de uns tempos pra cá a mesma foi perdendo os costumes, hoje estão tentando resgatá-los. Álvaro Alves Lembra de quando eu era pequeno, chegava a época das festas juninas fazíamos fogueiras e dançávamos quadrilha, com isso toda a comunidade se reunia para festejar.
Na semana santa brincavam de Judas (brincadeira onde se escondia o mesmo para todos procurarem). Com o passar do tempo isso tudo foi se perdendo por conta que as grandes partes dos moradores antigos foram embora e outros morreram. Fazendo com que nossos descendentes fossem deixando todos os costumes de lado. Então hoje nós estamos trabalhando pra tentar resgatar de novo essa cultura da nossa comunidade. Garante Álvaro Alves.
A maior tradição da região é a festa do Divino Espírito Santo, de mais de 120 anos de antiguidade no Vale do Guaporé, em todo lugar que a coroa passa existe uma irmandade, isso é uma diretoria de sete componentes. No ano de 2.011 foi criada a diretoria da Comunidade do Forte e para 2.021 a comunidade será sede da Festa. Quando a Coroa do Divino Espírito Santo chegava ao forte, Dona Faustina dizia: “vamos minhas filhas, vamos meu pessoal, vamos pedir a Deus que nos liberte”.
A identidade do povo do Forte está intrinsicamente ligada com a religiosidade e a cura. O que me marcou mais para gostar daqui. Foi uma benção que eu recebi. Por isso que eu peço pro Senhor ter misericórdia de nós. Afirma dona Faustina. A certeza da libertação dos negros de Guaporé é sustentada pela fé. A luta se mantem viva e forte.
A Associação Quilombola do Forte Príncipe (AsqForte) foi a organização que representa a resistência da comunidade e a reivindicação dos direitos da comunidade quilombola. Também há uma Associação de Mulheres o a Colônia dos Pescadores, anexa a Colônia de Costa Marques, e a citada Irmandade do Divino, além das comunidades católica de Nossa Senhora da Conceição e de diversas denominações religiosas.
Em um olhar externo percebe duas instituições brigando pela terra, que é o Exército brasileiro, uma instituição muito forte, federal, e a associação quilombola do Forte Príncipe da Beira, mas ao ouvir as histórias de opressão de humilhações, a comunidade com sua identidade territorial quer a liberdade. Agente não tem essa liberdade, é como se estivesse na época da escravidão aqui, os senhores é o exército, e nós temos que obedecer tudo que vem deles, do contrário, a comunidade acaba recebendo represálias. Laís dos Santos.
Hoje, o Forte está de pé graças a sociedade civil - a comunidade quilombola. A Associação Comunitária está legalizada e os moradores se desafiaram a permanecer na terra. Mesmo com as perdas pós golpe tem-se a garantia das leis Federais para as comunidades quilombolas permanecerem nas suas áreas. A certificação quilombola permite fazer do local de origem o território próprio, ter direitos, permite a liberdade de ir e vir. Mesmo assim os governantes recusam a reconhecer o direito dessas comunidades. Afirma Elvis Pessoa. A Associação Quilombola tem dado respaldo da comunidade.
Hoje a comunidade não coleta mais borracha e sofrem dificuldade para coletar e vender castanhas, mas houve um tempo que era tudo liberado. Nós íamos e voltávamos. Tinha uma colocação. Eu ficava de dez a quinze dias na colocação. Trazia a borracha nas costas. A gente fazia a borracha defumada, a gente vendia no Forte. Eu aprendi no seringal, eu tinha oito anos de idade. A força da seringa é maio, junho, julho, agosto, setembro e outubro. Em novembro começa as chuvas e fica difícil. A castanha é novembro, quando começa a cair, aí vai dezembro e janeiro, afirma Manoel Pereira Lima.
O seringueiro Manoel Marcolino, popular “perna de Abelha”, quilombola e morador do território do Forte. Foto: Pe. João Picard / Arquivo da CPT – Rondônia
Aqui era o único lugar que trabalhava na seringa, roça, castanha, pesca, até a chegada dos comandantes querendo mandar, foram cercando tudo, inclusive o colégio, e depois já inventaram de pedir documento do pessoal da comunidade. Muitas pessoas foram desgostando e foram embora. Diminuiu as barricas (seis latas de castanhas de sessenta quilos) tiradas na Serra. O fogo queimou e estragou muito castanhal. Segundo Salém Penha chega essa fase, o comprador manda a castanha tudo pra Bolívia, chega um brasileiro comprando é pra Bolívia, mas não tem uma garantia de preço mínimo.
Em São Bartolomeu é dia de tempestade, dava a primeira chuva aí a gente plantava se fosse uma época de lua crescente plantava no dia seguinte a planta em agosto, quando era em dezembro a gente já tava colhendo por exemplo o milho, a melancia o jerimum que dava num prazo de noventa dias, o feijão se fosse desse feijão de corda, porque se fosse do outro o carioquinha ele saia antes, na época de março até abril, ai a macaxeira, ai você planta tem a macaxeira. O arroz, você planta geralmente em novembro ou dezembro, em março você está colhendo, o milho do mesmo jeito, porque tem um milho da produção (OSMILDO PINHEIRO...).
Há relatos de depredações e roubos por parte do exército, inclusive com denúncias em jornal. Eles (o Exército) impedem de brocar e queimar as roças. Não obstante, a comunidade vem perdendo as sementes crioulas. A EMATER manda sementes hibridas que não se reproduzem.
Entrevista de Elvis Pessoa, atual presidente da Asqforte. Rede TV / Arquivo da CPT – Rondônia
A pesca só é permitida com linhada e com a carteirinha de quilombola no bolso, ou então com a carteira de pescador. Não pode ultrapassar de sete quilos por dia, se o cara for pego com mais de sete quilos aquele peixe é levado, isso foi o que o chefe do IBAMA falou aqui numa reunião que teve, sete quilos por semana, afirma Osmildo Pinheiro. Isso dificulta a reprodução das famílias quilombolas. Segundo Osmildo sete quilos são pouco para uma família grande, porque aqui ninguém tem o luxo de comprar carne ou frango, no preço que está, fica complicado realmente.
Diante de tudo isso, todas as relações sociais, organizativas, comunais, familiares e vizinhanças estão ameaçadas, mas as famílias resistem.