“Para nós, a palavra demarcação significa oficializar uma área que já era dos índios, que sempre foi dos índios” – Braz França, líder indígena Baré do Alto Rio Negro.
O processo de demarcação das TIs do Alto Rio Negro contou com ampla consulta aos povos indígenas.
Foto: Pedro Martinelli/ISA
O que existia na década de 1980 para a região do Alto Rio Negro era um projeto de demarcação de terras indígenas em ilhas, o que não interessava aos índios. O Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) esteve na região em 1987, antes de nova Constituição Federal, e as lideranças já realizavam uma campanha nesse sentido, fundando a Foirn.
Nessa época, os militares tinham aberto os pelotões de fronteira e não tinham outras ou novas ambições para aquela região. Ao mesmo tempo, as grandes mineradoras, que por muitos anos manifestaram interesses de pesquisa e lavra, também haviam abandonado seus projetos de mineração. Então, em certa medida, a região passou a viver um período de calmaria, sem grandes conflitos de interesses. Mas o projeto de demarcação contínua ainda era percebido pelos militares com resistência, em razão da extensão total da área e de sua localização em região de fronteira.
A primeira avaliação do cenário regional feita pelas organizações de apoio ao movimento indígena local foi a de que os argumentos em favor da demarcação em área contínua estavam mal demonstrados. Era preciso investir num mapeamento georreferenciado que demonstrasse melhor o uso que os índios tinham do território que eles reivindicavam. Então, os pesquisadores e ativistas passaram praticamente dois anos viajando pela região munidos de GPS, navegando por cada um dos rios, parando de comunidade em comunidade, e assim animando o mapa que tentava dimensionar e qualificar as áreas de uso, construindo um banco de dados a partir do qual seria montada uma campanha de convencimento.
E esse processo estava sob os auspícios da campanha pelo clima que já estava acontecendo na Europa, uma campanha pioneira, pois vale destacar que, já naquela época, a Europa Central fez um acordo de mão-dupla, por meio de sua seção austríaca, no qual eles se impuseram metas de redução de CO2 na Europa e construíram alianças de apoio com os índios na Amazônia. Estes, por sua vez, se comprometiam a manter suas terras florestadas. A aliança foi tão importante e duradoura que viabilizou o trabalho da Foirn ao longo de doze anos, fortalecendo a organização indígena e a parceria com o recém-fundado ISA, anteriormente CEDI, com o qual havia estabelecido uma parceria de longo prazo.
Este mapeamento, mobilização e o planejamento do trabalho foram pensados para longo prazo. De modo que, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso foi eleito, Márcio Santilli assumiu a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) e, no primeiro ano do governo FHC, em 1995, o levantamento sobre a região estava pronto. Nesse período, num dos primeiros meses do ano, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma nota falando que o presidente iria em setembro a São Gabriel da Cachoeira ver de perto a situação da fronteira.
O presidente foi convidado a, uma vez em São Gabriel, falar com os índios e saber de suas demandas. Em agosto o presidente aceitou o convite. Uma recepção foi rapidamente organizada, superando uma grande má vontade dos militares em favorecer este encontro. Essa má vontade se traduzia em inúmeros empecilhos, desde o argumento de que na maloca dos índios não havia estrutura para receber o presidente, até a protocolar “falta de agenda”.
Mas um representante da Casa Civil foi a São Gabriel se reunir antes com as organizações locais, em um episódio que se mostrou bastante curioso. Houve uma tertúlia de horas entre os representantes do ISA, índios, militares e a Casa Civil. Várias cascas de banana foram postas no caminho a fim de arranjar motivo para que não ocorresse o encontro com o presidente. Ao final o encontro ficou marcado para a sala do comandante do batalhão em São Gabriel, e havia na ocasião muitos jornalistas.
Na visita, a proposta da Foirn foi entregue e levada para a Funai. Depois de um tempo, o Nelson Jobim, então ministro da Defesa, foi ao Rio Negro. Ele requisitou os estudos que estavam na Funai pela área contínua. Na viagem do ministro à região, Márcio Santilli, ainda presidente da Funai, foi convidado para ir junto no avião. A ideia era levar o ministro na maloca da Foirn, mas na agenda do ministro não constava nada disso, apenas encontrar algumas lideranças no gabinete militar.
Mas Santilli convenceu o Nelson Jobim, que acabou fazendo uma parada na maloca da Foirn. O detalhe é que a Aeronáutica havia feito um acordo com os índios para poder barrar um igarapé e fazer uma pequena hidrelétrica para alimentar os radares do Sistema de Vigilância da Amazônia, o SIVAM. E o igarapé era o limite norte de uma das terras indígenas a ser demarcadas, a Médio Rio Negro 2.
Os índios aceitaram mudar o limite da terra para o igarapé abaixo, liberando a construção da barragem. E, em troca, pediram que a Aeronáutica apoiasse o pleito pela demarcação. E ela fez isso. Essa negociação foi muito importante, pois o próprio ministro, que tinha resistência em aceitar os argumentos pela demarcação contínua, sustentados pelos mapas, teria dito que o apoio da Aeronáutica valia politicamente mais do que os argumentos dos antropólogos.
Uma coisa importante é que nesse momento havia sido feito um cruzamento de mapas das comunidades com ecossistemas da região, gerando um argumento muito forte que demonstrava a presença na região de um solo muito pobre, a chamada capinarana, com vegetação diferenciada, e ficava evidente que as comunidades estavam assentadas em regiões de terra firme, cercadas por grandes extensões de capinarana, que são áridas, mas contém recursos importantes e nas quais os índios não habitam, mas usam os recursos. Este cruzamento do mapa das comunidades com o mapa das paisagens explicava em grande parte a dinâmica da população e consistia em um argumento muito forte pela demarcação em área contínua.
Ao mesmo tempo, um parecer da Advocacia Geral da União desmontava a paranoia militar de que a demarcação de grandes áreas contínuas em região de fronteira iria vulnerabilizar o país, afetando a segurança nacional. O parecer afirmava claramente que a soberania nacional não seria fragilizada pela demarcação em área de fronteira.
Tudo isso contou a favor da proposta da demarcação contínua: o mapa novo, o apoio da Aeronáutica, a visita do FHC, o apoio da Dona Ruth, então primeira-dama, que havido escolhido levar a Comunidade Solidária para São Gabriel no primeiro ano do programa. De modo que no final de 1995 o ministro da Justiça assinou a delimitação das cinco TIs, a declaração pública do Estado reconhecendo os direitos dos índios sobre um território contínuo. Essa é a decisão política importante, que sai no Diário Oficial com memorial descritivo das áreas contínuas, cada uma com sua portaria de delimitação, que na somatória dão os 10.6 milhões de hectares e abrem o capítulo da demarcação física.
Quando essa área foi definida, com 10,6 milhões de hectares, 22 povos indígenas, 10% da população indígena do Brasil, na faixa de fronteira, não havia nenhum precedente de tal diversidade e localização. E o processo de demarcação foi muito participativo, inclusivo e mobilizador. Todas as comunidades foram visitadas, para assegurar que mesmo aquelas que não são permanentemente habitadas fossem incluídas no território. Mas foi uma demarcação pacífica, com pouca resistência local.
O trabalho contou com uma série de entrevistas coletivas que, por sua vez, gerou um levantamento socioeconômico para uma base de dados que, posteriormente à própria demarcação, serviu para a formulação de um conjunto de projetos-piloto para a região desenvolver-se em bases sustentáveis.
Hoje, o que precisaria avançar é a forma de governar aquele enorme território, pois um dos nós é que se trata de uma territorialidade transmunicipal, e todo o ordenamento jurídico e administrativo do Brasil é feito a partir das três esferas: União, estados e municípios. Então estas novas territorialidades, como a do Alto Rio Negro, se ressentem de uma unidade administrativa que possa dialogar diretamente com o orçamento federal, órgãos federais, para chegar a uma governança indígena de fato.
De todo modo é possível afirmar que o processo está avançando nesse sentido, com a eleição pela primeira vez de dois índios para a prefeitura de São Gabriel, entre outras conquistas recentes. O Rio Negro tem uma conjunção de fatores históricos – desde o fato dos índios serem descendentes dos que estavam lá há séculos, conhecerem bem os brancos e o mundo dos brancos, até o fato da região ser remota e de difícil acesso – que o elevam a um singular laboratório de experiências e projetos para o desenvolvimento sustentável.