“Nós queremos conduzir as nossas terras de acordo com as nossas normas indígenas” Maximiliano Menezes, liderança indígena Tukano do Alto Rio Negro.
Em meados dos anos 1980, a presença do Conselho de Segurança Nacional (CSN) nas decisões políticas referentes ao ordenamento territorial e à regularização fundiária na Amazônia vinha em um crescente contínuo. O poder da Funai foi esvaziado, dando espaço às estratégia militares de reconhecer os direitos territoriais dos índios apenas sobre as áreas “permanentemente ocupadas”, ou seja, as aldeias e seu entorno.
Essa tese seria derrotada pelo Congresso Nacional por conta da promulgação da nova Constituição, que consagrava o princípio de que o índio tem direitos originários e usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas.
Enquanto se formulava e se debatia a nova Constituição em Brasília, a região do Alto Rio Negro vinha sendo o principal laboratório dos militares para a implantação, na prática, da estratégia de demarcar, reduzir e fragmentar as terras indígenas na faixa de fronteira.
A situação levou as lideranças indígenas a convocar uma grande assembleia, em abril de 1987, para discutir três assuntos principais: o recém-chegado Projeto Calha Norte (PCN), a rubrica governamental que cobria todos os projetos na região, as atividades das empresas de mineração e a regularização das Terras Indígenas.
Financiada pelo governo federal via CSN, a assembleia foi unânime em reivindicar a demarcação urgente de uma área única no Alto Rio Negro, recusando a proposta do conselho de segurança de dividir a área em Colônias Agrícolas Indígenas. Nessa ocasião foi fundada a Foirn.
Criado o impasse, o CSN propôs uma solução intermediária, aceita por parte dos líderes indígenas: o governo federal reconheceria terras indígenas como um mosaico composto por Colônias Indígenas e por Florestas Nacionais (Flonas), de modo que a terra indígena resultaria em ilhas interligadas por florestas nacionais. A negociação envolvia a promessa do governo federal de prestar assistência técnica e econômica aos “índios aculturados”.
Com recursos do Calha Norte, vários levantamentos sócio-econômicos foram feitos ao longo de 1987 e 1988, processo que resultou em duas Áreas Indígenas, 12 Colônias Indígenas e 11 Flonas. Essa propostas foram confirmadas por meio de portarias interministeriais e decretos presidenciais que acabaram, depois de certo tempo, redundando na redução dos territórios e dos direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal.
Isso porque o desenho final da região reconheceu apenas o usufruto exclusivo dos índios sobre “ilhas” descontínuas as quais, somadas, totalizavam uma superfície de pouco mais de 2.600 hectares – o que correspondia aproximadamente a 32% das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios do Alto Rio Negro e reconhecidas pela Funai.
As “ilhas” chegaram a ser demarcadas fisicamente, porém a maioria dos marcos de concreto colocados pelo Exército foi arrancada pelos índios e jogada nos rios. Mas a reação indígena não ficou nisso. Em 1990, por meio de suas recém-fundadas organizações, os índios do Alto Rio Negro foram reclamar na Justiça, valendo-se de dispositivos da nova Constituição em vigor.
A partir dos protestos e manifestações das associações indígenas filiadas a Foirn, e tendo como base um laudo antropológico, o Ministério Público Federal propôs na Justiça Federal uma ação declaratória contra a União, Funai e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o órgão ambiental do governo federal. O objetivo era obter o reconhecimento oficial sobre uma área tradicionalmente ocupada de mais oito milhões de hectares, em acordo as proposta da Funai feitas entre 1985 e 1986. A ação pedia também a revogação dos decretos que criaram as 14 áreas indígenas e as 11 Flonas.
Em 1991 abriu-se um novo caminho legal para a revisão das “ilhas” demarcadas no Alto Rio Negro até 1989, com a definição de uma nova sistemática de demarcação de terras indígenas pelo governo do então presidente Fernando Collor. As novas regras condicionavam a validade das decisões anteriores ao apoio dos grupos indígenas envolvidos e permitia à Funai rever as terras demarcadas com base na legislação antiga. Assim, em maio de 1992, a Funai aprovou um novo parecer técnico sobre o Alto Rio Negro que reunificava as Áreas Indígenas descontínuas e englobava inclusive as Flonas. No mês seguinte, lideranças indígenas do Rio Negro estiveram na Funai e na Procuradoria Geral da República buscando agilizar o processo de demarcação.
Com o encaminhamento do processo pela Funai, a responsabilidade quanto ao andamento do caso passou às mãos do ministro da Justiça, que detinha o poder para assinar uma portaria declarando a área como de posse permanente indígena para fins de demarcação. Em agosto de 1993, já sob o governo de Itamar Franco e mais de um ano depois do despacho oficial da Funai, o então ministro da Justiça encaminharia uma recomendação à Presidência da República para a revisão da demarcação no Alto Rio Negro, anulando os atos anteriores que criavam as “ilhas” e as Flonas.
Paralelamente, a Advocacia Geral da União foi também chamada pelo Ministério da Justiça a dar uma parecer sobre a possibilidade de demarcação contínua. Mas o processo perdeu velocidade nos anos de 1994 e 1995, ano da eleição e do primeiro ano de mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Em outubro de 1995, porém, o ministro da Justiça Nelson Jobim foi a São Gabriel da Cachoeira por agenda com os militares e, acompanhado de Márcio Santilli, então presidente da Funai, reuniu-se com lideranças indígenas na sede da Foirn. Na ocasião, Jobim tomou ciência do acordo entre os índios e a Aeronáutica, pelo qual os primeiros cederam uma parcela de uma das terras indígenas projetadas para a construção de uma pequena hidrelétrica, em troca do apoio militar para a demarcação das terras.
No encontro, o ministro antecipou o parecer da Advocacia Geral da União que não via nenhum impeditivo para a demarcação das terras indígenas em área de fronteira. A nova proposta de demarcação contínua ainda foi submetida ao chamado direito de contestação, previsto no polêmico decreto 1.775, de autoria do ministro da Justiça.
Enquanto o governo avançava de forma lenta rumo à demarcação defendida pelos índios, a região do Médio Rio Negro sofria invasões de garimpeiros que desestabilizavam a vida de várias comunidades. E a região também sofria com um movimento indígena menos organizado e mais tardio em suas reivindicações.
Esse movimento passou ainda por um processo de reafirmação da identidade indígena das comunidades consideradas pelas autoridades federais como “caboclas”. Em outubro de 1990, uma assembleia de lideranças comunitárias colocou na pauta o reconhecimento dos direitos territoriais e a situação das invasões garimpeiras.
No final do ano, a serviço da Procuradoria Geral da República, o Museu Goeldi fez um levantamento na calha do rio Negro, entre a foz do rio Uaupés e a cidade de Santa Isabel, registrando mais de sessenta sítios e comunidades indígenas, com uma população total de 2.241 pessoas. O estudo, assinado pelo antropólogo Márcio Meira, propôs a demarcação da Terra Indígena Médio Rio Negro com 2.142.000 hectares.
Em seguida à realização deste trabalho, o Ministério Público Federal propôs uma Ação Declaratória contra a União Federal e a Funai pelo reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades indígenas. A Funai produziu na sequência um relatório antropológico que recomendava a demarcação de três áreas contíguas: TI Médio Rio Negro, TI Rio Téa e TI Rio Apapóris.
Finalmente, entre dezembro de 1995 e maio de 1996, o ministro Nelson Jobim declarou de posse permanente dos índios e determinou à Funai a demarcação administrativa de cinco terras indígenas contíguas na região do Alto e Médio Rio Negro, a saber: TI Médio Rio Negro I, TI Médio Rio Negro II, TI Rio Téa, TI Rio Apapóris, TI Alto Rio Negro.
O governo do estado do Amazonas chegou a contestar judicialmente quatro das cinco terras, por meio de mandado de segurança impetrado junto ao Superior Tribunal de Justiça, mas o julgamento final liberou a demarcação. O estado do Amazonas ainda recorreu da decisão, mas a Comunidade Indígena Curicuriari habilitou-se nos autos com apoio de advogados de organizações não-governamentais, solicitando e obtendo a decisão judicial definitiva, liberando a demarcação.
Superadas as dificuldades políticas e administrativas, em junho de 1996 a Funai convocou uma reunião na sede da Foirn para tratar do modelo de demarcação das cinco terras, quando aceitou algumas recomendações feitas pelos índios e organizações parceiras, a saber: como se trata de uma “área única” formada por terras contíguas, a demarcação física deveria ser feita considerando os limites externos do polígono formado pelas cinco terras e o fato de que a maior parte desses limites coincidem com a linha de fronteira internacional entre Brasil e Colômbia, já demarcada; não havia a necessidade de se abrir picadas nos cerca de 238 quilômetros de linhas secas existentes nos limites internos entre as terras indígenas, como também na área de superposição e nas linhas limítrofes comuns, entre a Terra Indígena Médio Rio Negro II e o Parque Nacional do Pico da Neblina; o processo de demarcação deveria ser mobilizador e participativo em todos os níveis, incluindo reuniões nas comunidades, produção de material informativo e o aproveitamento de mão-de-obra indígena.
A Funai acabou abrindo mão da administração da demarcação e a Foirn indicou o ISA, um de seus parceiros estratégicos, para assumir a tarefa. O projeto foi chamado de “Consolidação da demarcação” e teve que encarar uma situação sem precedentes, seja pela extensão, pela localização, pela pluralidade étnica, pelo número e distribuição das comunidades e pela distância e dificuldade de acesso entre elas e na região.
Mesmo assim, a Funai coordenou de forma indireta o rastreamento e materialização dos pontos geodésicos, com a abertura de clareiras e colocação de marcos, bem como a aquisição de equipamentos previstos no projeto, como botes, motores, rádios, veículos e outros. Esse modelo fracionado foi ineficaz, pois a empresa contratada não executou procedimentos técnicos com competência, chegando inclusive a implantar um dos marcos em território colombiano. Além disso, alguns custos foram duplicados, como os investidos na checagem dos pontos geodésicos.
As atividades de campo foram organizadas em 21 frentes de trabalho e realizadas entre abril de 1997 e abril de 1998. Só puderam ser realizadas nas datas previstas porque as organizações responsáveis colocaram à disposição suas equipes e equipamentos próprios, tentando driblar o fato de que os equipamentos previstos para o projeto sempre chegavam aos poucos, e depois do prazo estabelecido.
Foram organizados três tipos de frente de trabalho para percorrer a maior parte das comunidades e sítios, os rios internos ou próximos das fronteiras e para abertura das picadas secas e para fiscalização. Ao todo as equipes visitaram mais de 300 comunidades e sítios distribuindo material de campanha, fazendo reuniões e aplicando um questionário socioeconômico para traçar o perfil da região. Mais de 230 entrevistas coletivas foram realizadas, a partir das quais se gerou um banco de dados georreferenciado detalhado sobre a região.
Marco de bronze para a demarcação física das Terras Indígenas do Rio Negro, maloca da Federação nas Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Foto: Pedro Martinelli/ISA.