História do Marobá dos Teixeira
Toda essa vasta atividade era negada pelos escrivães que fecharam o inventário de João Teixeira de Souza no mesmo ano de sua morte, alegando não haver mais ocupação em suas terras, e abrindo caminho para as invasões dos fazendeiros e roubo das terras e dos pertences dos Teixeira. Assim, em 1939, todo o território de Feijoal, Coelhos e Marobá foi vendido como terra devoluta. Primeiro, dois fazendeiros se apropriaram de Feijoal e parte de Coelhos, expulsando seus legítimos donos, os quilombolas, que se dispersaram. Os que decidiram permanecer no território foram forçados a se mudar para Marobá, onde toda a comunidade passou a viver. O inventário sumiu do cartório, dificultando qualquer possibilidade de recurso por parte dos Teixeira.
Depois Marobá foi apropriada pelo fazendeiro Manoel Soares da Cunha Peixoto, o coronel Tinô que, estando doente, vendeu a propriedade três anos depois. No documento de venda, Tinô cita a existência de um herdeiro no território provavelmente se referindo à Antônio Teixeira de Souza, que permanecia na propriedade e havia criado relações com Manoel. Em que pese Manoel ter vendido indevidamente a propriedade dos Teixeira, pois havia constatado a presença de seus legítimos donos, sua citação no documento constituiu uma importante prova legal de que os quilombolas nunca abandonaram aquele território.
Com a nova venda, intensificou-se a expulsão dos Teixeira da fazenda e para isso foi utilizada todo tipo de humilhação e violência. Jagunços bebados quebravam as casas, ameaçavam os moradores e destruíam as plantações dos quilombolas. Os que insistiam em permanecer foram obrigados a trabalhar como agregados na fazenda, trabalhando em condições de escravidão nas lavouras de café que eles mesmo construíram com suas mãos.
Com tamanha pressão e injustiça, muitos Teixeiras foram obrigados a migrar e apenas Antônio Teixeira de Souza permaneceu no território, sendo obrigado a reviver a história de escravidão de seu pai João. Sua morte aos 90 anos, em 1965, o impediu de ver seus parentes retomarem sua terra de direito, dando continuidade a luta de seus antepassados. Filhos e netos de Pedro e Antônio Teixeira seguiram seu exemplo e permaneceram no Marobá, como agregados. Desde a ocupação inicial e mesmo nas condições mais desumanas, os Teixeira nunca abandonaram seu território.
Na terra eu deixei um irmão meu de escora, ele não saiu daqui de dentro desde a época do meu avô, nasceu e criou aqui dentro e uma irmã dele também. Estão bem velhinhos. Em mandava dinheiro pra eles da Bahia, o pouquinho que eu tinha. Depois de descobrir os papeis eu vim pra cá. Na época eu panhei muito apertado. Eles pegavam o chicote pra gente, era escravidão mesmo. Davam um tantinho pra gente de dinheiro e o trabalho aquele mundo. A gente sabia que era escravidão mas não podia falar nada. Até hoje um filho meu que eu trouxe da Bahia, tava limpando um secador ai, achou uma bala desce tamanho, é uma pistolagem aqui que só vendo. - Conta Orlindo Teixeira.
A retomada
Depois de décadas de expulsão e escravidão, no final da década de 1990, o inventário sumido de João Teixeira de Souza reapareceu e passou novamente para as mãos dos quilombolas. Um parente dos Teixeira no fim de sua vida, doente e arrependido, chamou seu Orlindo, um dos filhos de Antônio Teixeira de Souza e entregou o documento, confessando sua participação na compra das fazendas Feijoal, Coelhos e Marobá. Em troca, se tornou jagunço do coronel Tinô. Nas negociações com os fazendeiros que compraram as fazendas obteve o inventário e o guardou desde então.
Seu Orlindo morava no Sul da Bahia com a esposa e filhos uma vez que não conseguia sustentar sua família nas condições desumanas impostas no Marobá, mas na época já movia ação na justiça para a reabertura do inventário de João Teixeira. Agora com o documento nas mãos, em 2002, mandou chamar o restante da família para a retomada de suas terras. Os parentes começaram a retornar mostrando que a identidade com aquele território estava mais do que viva. Em 21 de agosto de 2008 foi fundada a Associação Quilombola e menos de um ano depois a comunidade obteve o certificado da Fundação Palmares.
Seu Orlindo, figura alta e imponente, é um dos principais responsáveis pela retomada das terras. Neto de João Teixeira, já com seus 87 anos em 2016, conta como colocou “o pé na lapa do mundo” e, convencido dos seus direitos, lutou contra toda uma lógica violenta e coronelista no campo, que remonta o tempo da escravidão nos nossos dias.
Completou 20 anos que eu peguei o inventário no fórum e parti na lapa do mundo com ele pulei aqui dentro com o inventário na mão. Depois fui pra Brasília e lá foi reconhecida a ata. O inventário é de 1899. Tem quanto tempo? 117 anos. (...)
Eu desci pra Bahia com uma renca de filho, botei na carcunda de um jumento e fui porque aqui não dava para criar os meus filhos, porque um fazendeiro ricão chegou aqui e tomou as terras e escondeu o inventário e meu pai [Antônio Teixeira, filho de João Teixeira de Souza] ficou aqui assobiando. O trabalho era pesado na Bahia mas pelo menos a gente recebia algum dinheiro. Aqui a gente trabalhava na fazenda de cacau, no campo, fazendo cerca e roça e não via o dinheiro. Por acaso o D.[1], que naquela época era o herdeiro, mandou me chamar e tava com o inventário escondido, ele sabia aonde tava. Aí eu cheguei e ele já tava pra morrer. O coronel Tinô, que tomou essas terras, sumiu com o inventário e passou as terras para a Caçula, sogro de Celina Antunes Luz que tá no processo.[2] Aí o D. chegou com um papel da cor dessa pedra, me deu e ainda falou assim: olha meu filho pode correr atrás que tem. Esses dois homens, João e Manoel (são primos, Manoel é o do lado de lá), tinham 2 mil alqueires de terra. E eu falei que….10 alqueires de terra já é demais, imagina 2 mil. Os colarinho branco tomou muita terra nossa. Eu peguei o papel e pisei na lapa do mundo. Fui aqui e acolá e arranjei o inventário, com muito jeito e sofrendo porque eu não tinha leitura nenhuma. Uma pessoa dessa sofreu, sofreu muito pra consegui pegar esse inventário. A partir daí que fizemos a ata. - Orlindo Teixeira.
Quando Orlindo Teixeira resolveu retomar as terras da sua família foi ousado, buscava respaldo legal na justiça comum, mas fazia também o que era justo com suas próprias mãos. Foi assim que ocupou uma das casas da fazenda, construídas pelos coronéis.
Há 8 anos me despejaram daqui. A gente vivia numas casas de palha que só vendo. E essa casa aqui trancada com uns “zé ninguem” se revezando para tomar conta. Aí a gente nessa situação resolveu ocupar a casa. Isso deu uma confusão da peste. Teve policia até encher esse terreno aí. Me acompanharam para sair. Parou um caminhão para apanhar meus “trem”[3] e sair sem destino. Uma nora minha me ofereceu um lugarzinho no armazém dela para guardar minhas coisas. Eu não tenho nada não, é tudo velho mas faz falta. Eu tive que me esconder. Fiquei nunca casinha pequenininha de lona com um bucado de gente minha lá, amigo, conhecido, no meio do mato por 8 meses. Não tinha muitas coisas mas perdi muita coisa com a chuva apodreceu. - Orlindo Teixeira.
(...) mas o importante é que voltou porque aquilo ali foi uma coisa muito feia que eles fizeram. Uma humilhação, humilhou muito. Aquilo ali ele sofreu na pela e não só ele, nós todos. É mais ele por ser uma pessoa de idade, pelo sofrimento que ele já teve aqui dentro, a humilhação muita porque até hoje a gente ainda sofre humilhação na cidade. Ela quando ela era viva muitas das vezes que ela via ele, eu to falando do que eu já vi, ela fazia menção de cuspir, como assim eu to com nojo dele, fazia gesto, uma pessoa muito baixa. - Maria Ferreira Praça, sobrinha de Orlindo.
Quando, por ordem da Polícia Federal, Seu Orlindo Teixeira voltou para a casa de onde tinha sido despejado conta que sentiu que “cresceu mais”. Ele, um homem gigante como um pé de Jatobá, teve uma pequena parte da sua reparação naquele momento e, com dignidade, continuou a olhar para frente, para todas as humilhações e danos que ainda hão de ser reparados para que ele e seus netos tenham uma vida digna.
[1] Não revelaremos o nome para preservar a identidade de D.
[2] O nome de Celina, indicado no processo é Elenaura Moreira Alves Luz.
[3] “Trem” significa coisas no dialeto do Estado de Minas Gerais.