A vida no Quilombo de Marobá
A Marobá dos Teixeira é uma comunidade quilombola rural constituída em 2012 por 15 residencias, nas quais vivem em torno de 40 pessoas, ligadas entre si por relações de parentesco e ancestralidade. A maior parte dos descendentes do patriarca João Teixeira se mudaram para outras cidades de Minas Gerais, São Paulo e para a Bahia durante os anos de expulsão, grilagem e escravidão, mas mantiveram as relações com o núcleo familiar quilombola. Hoje, aos poucos, estão regressando a sua terra de origem.
As práticas e a memória coletiva estão ligadas às formas de vida no campo. A roça e a criação de animais, conjugada às residências, são as principais atividade de substitência no quilombo. O trabalho é executado por núcleos familiares e algumas atividades são coletivizadas entre toda a comunidade, tal como a construção da farinheira comunitária, que permitirá aos Marobá dos Teixeira consumir e comercializar a farinha de mandioca, e o plantio coletivo do cacau, cuja renda serve para financiar os equipamentos coletivos e os próprios gastos da luta pelo reconhecimento do território. Maria Ferreira, sobrinha de Orlindo Teixeira, explica o sistema:
Em 2015 foram colhidos 1000 Kg de cacau. Com o recurso da colheita foi possível adquirir as portas da farinheira, vidros e outros materiais. A colheita do cacau é coletiva em esquema de mutirão. A colheita é vendida e o recurso vai para realizar melhorias na comunidade.
A produção coletiva do Cacau, introduzida na região por João Teixeira no século XIX, é uma forma de resgatar a riqueza comum que o patriarca deixou de herança naquelas terras e que foi expropriada pelos fazendeiros. Quando Maria mostra o antigo galpão de cacau que utilizava o trabalho escravo da comunidade, explica:
(…) lugar pertencente ao coronel Abílio, onde os trabalhadores manuseavam o cacau. Os trabalhadores eram formados, em sua maioria, pela família Teixeira, legitima dona daquelas terras. Depois de roubados, os Teixeira foram escravizados e obrigados a trabalhar para Abílio. O cacau foi trazido para aquelas terras pelo tataravô de Maria [avô de Orlindo], que arrumou as sementes no sul da Bahia e começaram a cultivar o fruto naquelas terras, antes de serem roubados por Abilio. Nessa casa o cacau era secado no forno, curtido e guardado. Os Teixeiras faziam todo esse serviço em troca de miséria. Mesmo depois de decretado o fim da escravidão ainda existia escravidão.
A comunidade se opõe à apropriação individual do cacau por qualquer pessoa que seja, quilombola ou não. O cacau é um bem comum da família e que deve servir à continuidade da luta iniciada por seus antepassados. Além do mais, o cultivo do cacau é uma atividade ecológica. As árvores da fruta foram plantadas ao longo da extensa mata que existe na comunidade e que fornece aos quilombolas também ervas medicinais e curas.
Grande parte da mata foi destruída pelos fazendeiros, e hoje a comunidade faz questão de preservar esse espaço que, para eles, é cheio de significados. As árvores enormes e antigas como jequitibas e gameleiras, guardam a memória dos antepassados. Os quilombolas contam que Pedro Teixeira, filho de João Teixeira, um dos seus antepassados, está enterrado sobre uma frondosa gameleira, alta como são os quilombolas da família Marobá.
A comunidade é majoritariamente católica, embora hoje não celebre mais tantas festas religiosas como no passado. Um momento destacado de culto para a comunidade é na morte de parentes.
(...)antes, quando algum parente morria, o corpo era velado em casa, com rezas e cantos entoados pelas mulheres. Os mortos eram enrolados em redes, carregados até o local das sepulturas e enterrados diretamente na terra. Recentemente, a comunidade demarcou dentro do seu território um espaço destinado ao enterro de seus mortos, o cemitério Santo Antônio. Mas os antigos cemitérios são muito valorizados pela comunidade. Todos sabem onde seus antepassados estão enterrados: no cemitério do Feijoal, onde está o corpo de João Teixeira dos Santos ou no cemitério da estrada de bandeira, além da sepultura de Pedro Teixeira. (Maíra Leal, 2015).
A mata, a roça, as casas, as antigas propriedades dos fazendeiros e os antigos cemitérios formam um território repleto de significados, onde se entrelaçam as histórias dos antepassados e a resistência quilombola às diferentes formas de violência, roubo e escravidão. Nesse vasto território a família vive de forma comunitária, encontrando-se diariamente para conversas, atividades de ajuda mútua, mutirões, festas, casamentos e assembleias para decidir os rumos da comunidade.
A precariedade de infraestrutura na comunidade e a falta de acesso aos bens essenciais é notória. A maioria das casas são construídas com materiais muito rústicos, a partir da antiga técnica do pau-a-pique. Não existe luz elétrica e a captação de água é feita a partir dos córregos da região, sem qualquer tratamento. O acesso à saúde é um enorme problema, pois o posto mais próximo é de difícil acesso e os quilombolas têm que se deslocar cerca de 30 Km para receber atendimento adequado. A educação igualmente é um problema histórico para a comunidade, as crianças têm que se deslocar aos municípios vizinhos para frequentar as escolas e o analfabetismo é a realidade da maioria das pessoas de maior idade.
O fato de terem hoje terras para plantar e viver reconhecidas pela Fundação Palmares torna possível o trabalho e a vida comunitária, sobretudo entre os mais velhos. Para os mais jovens, no entanto, são necessários mais estímulos para continuarem na terra, muitos saem em busca de melhores oportunidades.
O maior sonho da comunidade é ter a titulação das terras para viverem e trabalharem em paz. Isso, no entanto, não é tudo. Claro está que os quilombolas precisam do atendimento integral de saúde e educação quilombola e de oportunidades para os mais jovens. São necessárias políticas públicas que garantam seus direitos básicos e a valorização da sua história.
Além disso, há um enorme desejo de reparação história por toda humilhação sofrida. Essa reparação passa pelo reconhecimento de que tudo o que passaram e tudo o que lhes foi roubado é fruto da persistência de uma lógica escravocrata e coronelista no campo brasileiro. Como explica Seu Orlindo Teixeira ao falar da briga que teve com Elenaura (Celina), a esposa do filho de um dos coronéis que lhes roubaram as terras:
A Celina foi embora, sumiu. Dela eu quero meus danos. Isso aí eu vou caçar um advogado. Eu já tô com as vistas ruins, não posso viajar mais. Celina é a esposa de Abílio. E ela falou no Cantagalo, um supermercado muito bom. Chegou perto de mim e falou, com um monte de pistoleiro do lado dela e o supermercado cheio: “O seu Orlindo, com que ordem o senhor ta construindo casa lá na minha fazenda?”. Eu respondi: “Sua não é minha, eu tenho o documento dela e você não tem. Você fez papel falso.” Em 1940 foi que o marido dela entrou aqui, o Caçula. Ela respondeu: “Caçula não senhor! Auto lá com essa conversa. Coronel Caçula!”. Ai eu respondi: “Coronel Ladrão, que cês tudo é ladrão! Eu quero é meus danos!”.