“Se a gente não fizesse isso, já teriam até tomado da gente, porque assim mesmo as madeireiras estão invadindo por trás, já levaram a maior parte da nossa madeira ali de trás. O motivo para buscar essa titulação foi para conhecer e reconhecer por onde é nossa área mesmo”, segundo Carlos Caetano, do quilombo do Silêncio.
“Estava entrando muita gente de fora. A gente tinha medo mesmo era de vir um grande fazendeiro e tirar nossa terra, e ficaríamos sem ter onde trabalhar”, disse Manoel Sebastião, do quilombo do São José.
A busca pela titulação foi incentivada pelos Encontros Raízes Negras promovidos pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) em parceria com comunidades quilombolas da região, com a Paróquia de Oriximiná e a Associação Cultural Obidense – ACOB. Iniciados em 1988 no quilombo do Pacoval (localizada em Alenquer), em suas nove edições reuniu quilombolas de diversas quilombos do Baixo Amazonas. O terceiro encontro foi realizado em uma dos quilombos que compõe o território das Cabeceiras, a do Silêncio no ano de 1990.
Os encontros tiveram grande importância no início da organização dos quilombos do Baixo Amazonas. Eram momentos para o fortalecimento de uma luta conjunta dos quilombolas por direitos e pela busca da efetivação do Artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição brasileira de 1988 que considerou como dever do estado brasileiro a concessão de títulos de propriedade às comunidades quilombolas.
Chegada de quilombolas para participar do encontro Raízes Negras no quilombo do Silêncio (Foto: Acervo CPI-SP)
Foi nesse contexto que se fortaleceu a parceria entre os quilombos de Óbidos e os do município vizinho de Oriximiná e a Comissão Pró-Índio de São Paulo. A titulação da primeira terra quilombola em 1995, a de Boa Vista situada em Oriximiná, incentivou os quilombolas das Cabeceiras a também buscarem esse direito.
“Foi um dos maiores motivos [a titulação da Boa Vista]. A gente viu essa necessidade de lutar por um direito que era nosso, e que até então a gente desconhecia”, Verinha Oliveira dos Santos, 51 anos, do quilombo do Cuecé, professora e uma das lideranças que participaram da luta pela titulação do território
A titulação de Boa Vista foi fruto de sete anos de mobilizações e pressões das comunidades quilombolas de Oriximiná, iniciadas logo após o reconhecimento na Constituição de 1988 do direito à terra e consolidou o entendimento - até então controverso - que as terras quilombolas devem ser tituladas como propriedade coletiva e não individualmente para as famílias, atendendo à principal demanda da população quilombola.
Estratégia de acesso
“A coletividade é para todo mundo se respeitar”, Carlos Caetano, do quilombo Silêncio
Um dos primeiros passos das comunidades de Óbidos foi a fundação em 1997 da Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Óbidos (ARQMOB) para conduzir a luta em defesa dos seus direitos. Criada a associação, requereram ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a abertura de processo para a titulação das terras das Cabeceiras, o que veio a acontecer no ano de 1998.
O processo de luta incluiu a realização de diversas reuniões nos quilombos das Cabeceiras, como explica Verinha:
“Foram feitas muitas discussões, encontros inclusive, a gente passava em todas as comunidades reunindo e discutindo. Não foi uma reunião, foram várias. Veio uma equipe do Incra, de 5 ou 6 pessoas, eles acompanharam. Reunimos em cada comunidade para esclarecer as pessoas de como seria o título”.
Segundo Manuel Siqueira, do quilombo de São José, cada comunidade deliberava separadamente e “depois todos se reuniam no Cuecé para discutir sobre o que foi conversado por cada uma”. Um assunto bastante discutido foi a questão da titulação como área coletiva. Embora o uso da terra seja de forma coletiva, no momento da regularização fundiária surgiram muitas dúvidas sobre as implicações de um título coletivo, como explica Carlos Caetano, do quilombo Silêncio:
“Essa palavra, coletivo, deu muito trabalho aqui dentro da área. Quando a gente falava em coletivo as pessoas pensavam que todo mundo iria tomar o que era do outro. Trabalhamos muito para explicar para as pessoas que a coletividade ia valer não para tomar o que o outro tinha. Mesmo que fosse coletivo, que se fosse precisar qualquer material dentro da área do outro ia precisar da autorização do outro. A coletividade é para todo mundo se respeitar”.
Wanderley Garcia, do quilombo Silêncio reitera a importância da coletividade:
“Ser coletivo é a única forma que nós temos para conquistar nossos objetivos, nossos direitos. Se quisermos fazer tudo individual, fica muito difícil”
Na luta pela titulação, os quilombolas de Cabeceiras contaram com o apoio dos quilombolas de Oriximiná como lembra Verinha dos Santos:
“O pessoal de Oriximiná veio, colocou a experiência deles. Falavam de como estavam vivendo a partir do título. Também das dificuldades que eles tiveram. Eles já tinham a experiência, nós éramos marinheiros de primeira viagem”.
Outro parceiro lembrado por Verinha foi a ONG Comissão Pró-Índio de São Paulo: “a Comissão Pró-Índio deu muita força no processo da titulação”. A organização auxiliou a ARQMOB na mobilização dos quilombolas, nos tramites burocráticos, na interlocução com o governo. Além disso, viabilizou a realização de estudo acerca do histórico de formação da área das Cabeceiras (Funes, 1999) e de mapa com os limites identificados pelas próprias comunidades quilombolas com a finalidade de amparar o processo de titulação.
Um dos maiores percalços enfrentados pelos quilombolas ocorreu ao final de todo o processo, já no momento de receberem o título. A cerimônia de entrega estava agendada para o dia 20 de novembro de 1999 mas não ocorreu:
“Preparamos toda uma festa para receber o título, enchemos todo um barco, o barco foi lotado, porque era aquela euforia toda. Organizamos toda uma festa lá [no encontro raízes negras em Santarém] e aqui para quando chegássemos com o título”, rememora Verinha dos Santos, do quilombo do Cuecé.
O cancelamento decorreu de disputas internas ao governo que resultaram na mudança das normas relativas aos procedimentos para regularização das terras quilombolas. Em novembro, o governo federal decidiu retirar do Incra a competência pela titulação das terras quilombolas e delegar ao Ministério da Cultura, via a Fundação Cultural Palmares. Assim, apesar do Incra ter encaminhado todo o processo das Cabeceiras, não pode entregar o título:
“Foi assim, um balde de água fria, ficamos desnorteados, mas a gente disse, não vamos desanimar, já formamos uma comissão para ir para Santarém e ir para Belém para conseguir o título”, explica Verinha.
O título foi entregue pela Fundação Cultural Palmares somente em 08 de maio de 2000 após muita pressão dos quilombolas.
Vale observar que posteriormente, em 2003, a competência para a titulação das terras quilombolas voltou a ser delegada ao Incra que permanece com tal responsabilidade até hoje.