A maior parte dos camponeses que atualmente residem no Assentamento Canaã migraram para Rondônia entre 1970 e 1980. Ser um desempregado na cidade ou trabalhar nas terras de outros eram as opções de vida disponíveis para a maioria da população que se deslocou para Rondônia.
"Eu acho que [trabalhar em terra alheia] e? pedir esmola pra dois ne?... porque... [...] se eu for trabalhar no terreno de outra pessoa, vou trabalhar de ameia, enta?o vou pedir esmola pra mim e pra ele, ne?... enta?o... na?o vale a pena a gente... cultivar o terreno de outras pessoas na?o... melhor eu ir pra rua!" (depoimento de Pomar, camponês que vive no Assentamento Canaã, ao pesquisador Alisson Dioni Gomes)
A ocupação do Assentamento Canaã
Em 2001, 126 famílias ocuparam a Fazenda Arrobas/Só Cacau. A área de 3.600 hectares correspondente à fazenda havia sido destinada a projetos de colonização. Na década de 1970, oito áreas foram cedidas a um grupo de seis empresários de São Paulo, sudeste do país, através de um Contrato de Alienação de Terras Públicas (CATP).
Os empresários deveriam efetuar a derrubada da mata e instalar ali plantações, ajudando a desenvolver e povoar a região. A derrubada da mata foi realizada e, provavelmente, extraída madeiras nobres, comuns na região e de alto valor no mercado, tanto nacional quanto internacional.
Logo após a abertura da floresta, a Fazenda foi destinada ao plantio de cacau. Mas, a terra acabou sendo vendida a uma outra empresa de Jaru (a 40km do atual Assentamento) que, por sua vez, vendeu-a ao empresário paulista Venceslau Jesus de Bernardes. Este, em 2000, vendeu as terras ao também empresário de São Paulo João Arnaldo Tucci. Mas, as terras não poderiam ser vendidas, já que faziam parte de um CATP. Apenas o direito de uso das mesmas poderiam ser repassados, desde que comunicados ao INCRA, o que tampouco ocorreu. É o que explica P.J, radialista, apoiador da causa e esposo de uma posseira:
Essa daqui é uma área de CTAP que não foram cumpridas as cláusulas do contrato. São terras que o INCRA doava para as pessoas, mas eles tinham um compromisso a cumprir. Isso foi de 73 a 78 e essa foi uma destas áreas para plantio de cacau, onde os proprietários teriam que plantar 50% da área. Aí fizeram os financiamentos, pegaram o dinheiro e foram embora para São Paulo. Com o tempo isso daqui valorizou, passou de um dono para o outro, venderam para outro que vendeu pra outro. Essa terra já passou pra três ou quatro donos. E uma das cláusulas era que não podia vender.
Quando o povo descobriu essa área aqui, com produção abandonada, sem documentos, eles procuram o INCRA. O órgão disse que ele poderiam entrar que a gente faz o processo de retomada. Isso foi em 2001 e vem se arrastando até hoje.
Os camponeses encontraram uma ampla extensões de terras férteis abandonadas, com problemas legais e não duvidaram em transformar o local no que se vê hoje, um verdadeiro paraíso verde onde se plantando tudo dá.
A mata foi derrubada há 30 anos, hoje só quem tira proveito dela são os macacos. O homem abandonou tudo. A terra tava abandonada, só tinha capoeirão e mato. Tinha muito carreador porque eles tiraram todas as madeiras boas. Nós chegamos pra cá, derrubamos, plantamos e estamos sobrevivendo. Dá pra sobreviver muito bem aqui no sítio, sem depender de renda lá de fora. (Arlindo Souza, camponês que vive há mais de 10 anos no Assentamento Canaã)
O INCRA vem realizando vistorias periódicas na área e o próprio superintendente do órgão afirmou que são notórias as melhorias realizadas na área, mas que nada podia ser feito porque o proprietário não desejava vender a terra ao governo e exigia a desapropriação. Os camponeses contestam as explicações do governo, pois há amparo jurídico para que a desapropriação por função social seja realizada.
O caminho da Revolução Agrária
A ocupação das terras do atual Assentamento Canaã foi uma ação sem vínculo com nenhum movimento organizado. Os camponeses souberam da existência da área em 2001 e decidiram ocupá-la. Aos poucos, mais e mais famílias foram se juntando à luta. No início, montaram um acampamento que durou até 2006.
Neste momento, os camponeses formaram a Associação dos Produtores Rurais do Canaã (Asprocan) e começaram a surgir alguns dirigentes. Estes afirmavam que era melhor continuar acampados, pois esta era a tática mais utilizada nas tomadas de terra. Logo, estes dirigentes foram tomando mais e mais poder e começaram a ameaçar os camponeses. Segundo relatos, eles andavam armados, diziam que iriam trazer melhorias para a área, mas nada faziam, além de se apropriar indevidamente das contribuições financeiras dos camponeses para a Asprocan.
Aos poucos, os camponeses foram se aproximando de um movimento organizado muito atuante na região, a Liga dos Camponeses Pobres da Amazônia Ocidental (LCP). A LCP é, hoje, o movimento camponês organizado com maior atuação no estado de Rondônia. A Liga é conhecida em todo o país por suas posições radicais no que se refere à luta pela terra e no enfrentamento com o governo federal, entre outras coisas.
[...] tinha uns companheiros no passado, que falava: “se a Liga entrar, no?s vamos sair da associac?a?o, porque a Liga atrapalha a associac?a?o”. Mas por que a Liga atrapalha a associac?a?o? Porque a associac?a?o tava usando para usufrutos, so? pra embolsar, e quem embolsava era quem pegava o dinheiro, na?o era o pessoal na?o (relato do camponês Grabois, que vive no Assentamento Canaã)
O processo de afastamento da antiga direção da Asprocan foi se tornando cada vez mais visível quando as famílias camponesas decidiram seguir o caminho da Revolução Agrária, defendido pela LCP. As famílias já estavam acampadas, sem poder plantar, há cinco anos. Em 2006, com a ajuda da LCP, elas realizaram o Corte Popular da terra. A cerimônia oficial de entrega dos lotes foi realizada em fevereiro de 2009. Cada família recebeu um lote de 10 alqueires.
O corte popular é um momento que, além de permitir que cada camponês tenha seu pedaço de chão, amplia o domínio camponês da área, liberta-a, faz com que dela possam brotar os frutos do trabalho humano. Com o corte, a área deixa de ser um acampamento e toma feições de assentamento.
A Revolução Agrária consiste em várias etapas, mas podem ser definidas num lema muito utilizado pelo movimento camponês: ocupar, produzir e resistir. O primeiro passo é, portanto, a ocupação da terra. O segundo é cortá-la, possibilitar que cada família tenha seu terreno e também ampliar o domínio camponês da área. O terceiro passo é desenvolver a produção, na forma de cooperativas e grupos de ajuda mútua. Há duas grandes particularidades no caminho da Revolução Agrária. O primeiro deles é o fato dos camponeses ocuparem diretamente o latifúndio e começarem a desenvolver o local, sem esperar pelas decisões governamentais ou judiciais. Edson, vive com sua família no Assentamento e explica como pensam e atuam os camponeses hoje:
Se tem uma fazenda ali que e? improdutiva, ningue?m trabalha nela, so? e? capoeira, mato... um lugar que tem que ser explorado. Dai? o tem movimento que acampa ali ao lado, esperando a decisa?o do governo. Dai? fica 10, 20 anos ali acampado e ningue?m da? decisa?o nenhuma. E no?s trabalha por conta pro?pria, no?s chega e peita mesmo, e abre aquele trem e enfia de esperar. Ai? o governo tem que dar o pulo dele! Mandar uma cesta ba?sica, arrumar me?dico e por aqui pra dentro. Vem me?dico la?. Sa?o tudo e? provide?ncia deles la?. Ta? vendo que o povo precisa. [...] E se no?s estivesse acampado la?, ao redor da fazenda? Do lado de fora? Que assiste?ncia no?s ia ter? Enta?o eu acho que estes movimentos trabalham errado. No meu ponto de vista... agora... por que no?s viemos pra ca?? Por que? que viemo? Porque aqui, ningue?m morava aqui, era so? capoeira e cacau abandonado, e na?o tinha ningue?m pra tomar conta. No?s viemos porque a terra era improdutiva, ai? o povo entrou e... ta? ai?! Fez a a?rea produzir!
Assim, percebe-se que o estabelecimento destas áreas de produção familiar camponesa, por mais que reivindiquem o reconhecimento do Estado são ações protagonizadas pelos próprios camponeses. Nas áreas da Liga dos Camponeses Pobres, cuja ação não depende do Estado, esta nomenclatura foi substituída por Área Revolucionária, já que Assentamento é o nome que usa o Estado para referir-se a áreas que foram implementadas pelo próprio governo em programas de Reforma Agrária.
[1] Para maiores informações, o documentário "Nas cinzas da Floresta", realizado por Adrian Cowel constitui uma excelente fonte de pesquisa. O documentário pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=TwG3HlyqIHI