O marco normativo para o acesso à terra em Dois Riachões tem como princípio a função social da propriedade de acordo a Constituição Federal de 1988.
A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - Aproveitamento racional e adequado;
II - Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - Observância as disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores (CF, 1988. Art. 186).
Assim que o INCRA fez a vistoria foi confirmada em seu Laudo datado em 08 de agosto de 2002, que de acordo a “Classificação do Imóvel Rural” foi constatado que o Grau de Utilização da Terra – GUT de (%) de do Grau de Eficiência de Exploração – GEE de (%) a Fazenda Dois Riachões constitui-se um imóvel ideal para o Programa de Reforma Agrária. Classificada como Grande Propriedade Improdutiva.
Diante disso a proprietária utiliza-se de dois procedimentos, um jurídico e um administrativo. O procedimento jurídico adotado inicialmente foi a “Ação de Manutenção Posse[1]” medida cautelar não cumprida como ordem de despejo, já que as famílias estavam acampadas nas margens da BA 652, confirmada posteriormente pelo próprio DERBA.
Já com a propriedade ocupada pelos camponeses, a proprietária recorre à medida administrativa por meio de um “contra laudo” elaborado pela CEPLAC questionando o Laudo do INCRA apresentando dados de produtividade e questionando os índices de GUT e GEE, na qual questiona o parecer do INCRA favorável a desapropriação.
Nesse intervalo, através de um decreto presidencial, a área passa a ser de interesse público para fins de reforma agrária. A proprietária recorreu mais uma vez. Contudo, sem sucesso. Tanto, o Contra Laudo Topográfico inibindo o Laudo do INCRA, quanto as Ações de Reintegração de Posse por Esbulho Possessória, chegando a 7ª vara de Salvador se julgou improcedente. Provando que o diagnóstico da CEPLAC foi elaborado diretamente do escritório, sem ao menos visitar a área.
Considerando todas as instancias dos procedimentos administrativos o Assentamento Dois Riachões avalia como vitoriosa o recurso para o TRF em que avalia todos os requisitos do pressuposto do laudo e após a vistoria do Perito federal confirma a veracidade do Laudo do INCRA. O acordão do TRF Brasília favorável ao INCRA. Pedindo para proprietária avaliar os Títulos de Dívida Agraria - TDAS atualizando a tabela do judiciário; e parecer parcial/RO – já destinando a propriedade para reforma agrária e pedindo apenas para refazer a tabelas dos preços – essa decisão leva os acampados a aumentar as expectativas na desapropriação.
Entre os questionamentos da proprietária, além do Artigo 186 da Constituição Federal, o § 6º do Art. 2º da Lei nº 8.629/93 e o Medida Provisória nº 2.109/2001, que veda anos a realização de vistorias em áreas invadidas:
Art. 15-A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.183-56, DE 24 DE AGOSTO DE 2001. No caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, inclusive para fins de reforma agrária, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem, fixado na sentença, expressos em termos reais, incidirão juros compensatórios de até seis por cento ao ano sobre o valor da diferença eventualmente apurada, a contar da imissão na posse, vedado o cálculo de juros compostos.
A ocupação da área acontece cinco anos após a vistoria do INCRA com a confirmação de que a propriedade não estava cumprindo a função social e três anos após o Decreto Presidencial declarando a fazenda Dois Riachões para fins de interesse social. Diante disso, a ocupação tem dois princípios básicos:
- A desobediência civil diante da morosidade do INCRA - manifestação legalmente aceita contra o regime imposto por um governo opressor, quando um grupo de cidadãos se recusa a obedecer determinadas leis, em forma de protesto, por considera-las imorais ou injustas;
- Propor o conceito de “função social da terra” diante do conceito de função social da propriedade. Termo apropriado pelo direito moderno capitalista que transformou a terra em mercadoria para proteger a propriedade privada individual absoluta, rentista e especulativa em detrimento do bem estar social dos camponeses com seus modos de vida e suas relações harmoniosas entre os meios de produção e a natureza.
Art. 5º - XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
Diante disso, o então acampamento Dois Riachões prova, entre os próprios camponeses e diante das instâncias públicas que a “função social da terra é prover a Vida” (Marés, 2003). Segundo Neto, acampado na área e Licenciado em Direito: A agroecologia fomentou essa ideia o conceito de função Social da terra. A produção venceu a ação da proprietária. O acampamento provou que é possível realizar um trabalho em lotes familiares, com alta produtividade e soberania alimentar, sem cercas, onde cada um respeita o espaço do outro e se integra aos trabalhos coletivos e ações de manejo agroecológicos e sustentáveis, com um comércio justo e solidário.
Mas, diante do acordão da AGU – Advocacia Geral da União em que o INCRA compromete resolver as irregularidades nos assentamentos e a Instrução Normativa – IN 71, que estabelece ações e medidas a serem adotadas nos casos de constatação de irregularidades em assentamentos e por negligencia do INCRA a reforma Agrária é suspensa, até que fosse resolvido o acordão supracitado, entre Tribunal de Contas da União (TCU) e INCRA. A imissão de posse mais uma vez foi atropelada.
O Golpe Jurídico parlamentar, com a queda da Presidenta Dilma, também tem uma influência no retardamento da ação. Extingue-se o Ministério de Desenvolvimento Agrário, ficando como departamento sob a responsabilidade da Casa Civil.
Depois de tantas idas e voltas é chegada da imissão de posse no dia 25 de maio 2018. Mas diante, de todo aprendizado os camponeses questionam: agora, temos a maior conquista ou maior empecilho? Eles sabem que agora o Estado começa a ditar a regras no assentamento. Diante dos limites da autarquia os camponeses temem retardar os passos do assentamento.
Durante todo esse período o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social e CPT – Comissão Pastoral da Terra, junto ao Movimento CETA sempre tiveram presentes, tanto nos processos formativos, como jurídicos. E dentre as propostas e incidências diante do marco normativo o assentamento Dois Riachões tem dois princípios Básicos:
- Criar um território agroecológico, além do assentamento;
- Fortalecer a educação, a partir do modo de vida camponesa, com espaços formativos e inovações tecnológicas em parcerias com centros de estudos e universidades.
[1] Modelo de ação possessória de manutenção da posse contendo os requisitos da petição inicial com base no Novo Código de Processo Civil, cabível quando o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação. Ações possessórias.