O marco normativo que regulamenta o acesso às terras no Brasil é definido pelo Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964). O marco legal, publicado em 1964, durante a ditadura militar brasileira, é, ainda hoje, o regulador do acesso à terra no país.
Art. 2°. É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
Art. 12. À propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta Lei. (Lei n. 4.504/1964).
Assim, o Estatuto da Terra garante o acesso à propriedade da terra, definindo que a propriedade rural deve cumprir sua função social, que define como:
§ 1°. A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem. (Lei n. 4.504/1964).
Porém, o Estatuto da Terra não menciona através de quais dispositivos legais o trabalhador rural terá acesso à terra. A Reforma Agrária, assim como a posse são tratadas pelo Estatuto. Mas a compra foi omitida, ficando esta regulada por um marco normativo ainda mais antigo, a Lei de Terras, de 1850, promulgada no Brasil Imperial, por Dom Pedro I.
Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas[1] por outro titulo que não seja o de compra. (Lei de Terras, 1850).
Para entender o ordenamento jurídico brasileiro no que tece ao acesso da terra atualmente, baseado no estabelecimento da propriedade privada, seja ela por compra, posse, doação ou reforma agrária é preciso que façamos um breve histórico da distribuição de terras no Brasil desde a invasão e colonização portuguesa.
Até 1530, as terras brasileiras “descobertas” por Portugal pertenciam à Ordem de Cristo, sendo o Rei o administrador de tais terras. Visando povoar o Brasil – e fazer uso comercial, obviamente – o rei concedeu a Martim Afonso de Souza o título de capitão-mor e governador do Brasil. Este trazia consigo a autorização do Rei de se apossar de todas as terras que encontrasse e distribuí-las a quem lhe conviesse. Esta ação era chamada de sesmarias – doar a terra – e seu objetivo era estimular a ocupação e produção agrícola dentro dos prazos estabelecidos, que neste caso era de dois anos.
“Dom João, por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar, em África senhor de Guiné, e da conquista, navegação, commercio da Ethiopia, Arábia, Pérsia e da Índia etc. A quantos esta minha carta virem, faço saber que as terras Martim Affonso de Souza, do meu conselho, achar e descobrir na terra do Brasil, onde o envio por meu capitão-mor, que se possa aproveitar, por esta minha carta, lhe dou poder para que elle dito Martim Affonso de Souza, possa dar às pessoas que comsigo levar e às que na dita terra quizerem viver e povoar, aquella parte das ditas terras que bem lhe parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e quallidades, e das terras que assim der será para elle e todos os seus descendentes, e das que assim der aas ditas pessoas lhes passará suas cartas, e que dentro de dous annos de data cada hum aproveite a sua e que se no dito tempo assim não fizer, as poderá dar para outras pessoas para que as aproveitem, com a dita condição; e nas ditas cartas que assim der irá transladada esta minha carta de poder para se saber a todo tempo como o fez por meu mandado e lhe será inteiramente guardada a quem a tiver, e, porque me apraz, lhe mandei passar esta minha carta por mim assignada e sellada com o meu sello pendente. Dada na villa do Crato da Ordem de Christo, a 20 de novembro. Francisco da Costa a fez, anno do nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de 1530 annos. Rei” (LIMA, Ruy Cirne. 1954, p. 32).
Em 1532, a coroa portuguesa implantou o sistema de capitanias hereditárias, dividindo o Brasil em 15 faixas de terras. Estas terras foram entregues à administração de nobres portugueses, que recebiam a posse, mas não a propriedade. Os nobres deveriam desenvolver a região com seus recursos, para tanto recebiam a incumbência de fundar vilas; distribuir terras a quem desejasse cultivá-las; o direito de exercer o poder judicial e administrativo; de escravizar índios e até de aplicar a pena de morte.
As capitanias hereditárias pouco desenvolvimento geraram, sendo a maior parte delas um fracasso econômico. Mas conseguiram manter a união do território, salvaguardando o domínio do território brasileiro pela coroa portuguesa. Esta forma de organização perdurou até 1821, quando foram criados os estados brasileiros. Em 17 de julho de 1822, as sesmarias foram extintas. Em 1824, a primeira Constituição promulgada no Brasil independente de Portugal reconheceu o direito de propriedade daqueles que já ocupavam as terras e haviam recebido sesmarias.
Durante todo este período, as sesmarias e posses eram registradas nos arquivos paroquiais das Igrejas Católicas locais. Neste momento a Igreja era parte integrante do Estado. Até 1850 prevaleceu a posse e a compra como forma de ocupação e acesso às terras no Brasil.
Em 1850, Dom Pedro I publicou a Lei de Terras, na qual proibiu o acesso às terras devolutas através da posse. O monarca previa a libertação dos escravos - que só se efetivou em 1888 – e que estes pudessem se apossar de terras que ainda não haviam sido ocupadas.
Em relação à forma de acesso à terra, de 1850 até a atualidade, pouca coisa se modificou.
O acesso à terra se dá, principalmente, através da compra, regulada pelo Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Para que se estabeleça a compra e venda é necessário que, em primeiro lugar, haja um contrato entre as partes:
Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro. (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002)
Em segundo lugar, quando se trata de um imóvel, o ato deve ser registrado em cartório.
Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.
Somente após cumpridas todas estas etapas, o antigo proprietário pode repassar ao novo proprietário a escritura do imóvel rural, onde constará os nomes dos dois e todos os detalhes relativos ao contrato de compra e venda da propriedade rural.
[1] São consideradas terras devolutas as "terras públicas que em nenhum momento integraram o patrimônio particular, ainda que estejam irregularmente em posse de particulares. O termo "devoluta" relaciona-se ao conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado. Para estabelecer o real domínio da terra, ou seja, se é particular ou devoluta, o Estado propõe ações judiciais chamadas ações discriminatórias. A Constituição inclui entre os bens da União as terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental e à defesa das fronteiras, das construções militares e das vias federais de comunicação. As demais terras devolutas pertencem aos estados". In: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/81573.html; Acesso em 12 de dezembro de 2014.