Na história de Dona Adiva Nunes se poderiam cruzar muitas outras histórias e resumir o acesso à terra no Brasil. Neste documento, explicaremos em três partes os aspectos legais que envolvem a terra de Adiva Nunes: 1) compra; 2) posse; 3) dotação do estado através da Reforma Agrária
A compra
O acesso à terra através da compra está regulado no Brasil desde 1850, quando o imperador do Brasil, Dom Pedro I, promulgou, em 1850, a Lei de Terras. Através deste dispositivo legal ficaram proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não fosse o da compra. Em teoria, estava proibida a posse de terras devolutas[1].
Para que um imóvel seja legalmente adquirido através da compra é preciso que seja celebrado um contrato de compra e venda, conforme disposição legal do Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Neste contrato, o antigo proprietário se obriga a transferir o direito do imóvel ao novo proprietário através do pagamento da quantia determinada de dinheiro exposta no contrato. Logo, este contrato deve ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis da comarca. Após o cumprimento de todas estas etapas é, finalmente, considerada que a compra foi efetivada.
A posse e usucapião
O mesmo ordenamento jurídico que proibia a posse era também o que a legalizava. O Art.1º da Lei de Terras, como já se disse, afirmava que a terra só poderia ser comprada. O Art. 2º, punia os que se apossassem de terras devolutas ou alheias com multa e até seis meses de prisão. Porém, Art. 5º reconhecia e legitimava as posses:
Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primaria, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (…) (Lei no 601, de 18 de setembro de 1850).
E, atualmente, a posse e o usucapião das terras também são reconhecidas pelo Estatuto da Terra, de 1964: Art. 11. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária fica investido de poderes de representação da União, para promover a discriminação das terras devolutas federais, restabelecida a instância administrativa disciplinada pelo Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946, e com autoridade para reconhecer as posses legítimas manifestadas através de cultura efetiva e morada habitual, bem como para incorporar ao patrimônio público as terras devolutas federais ilegalmente ocupadas e as que se encontrarem desocupadas. (Lei, n. 4.504, de 30 de novembro de 1964- Estatuto da Terra)
E pela Constituição Federal de 1988.
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. (Constituição Federal, 1988)
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
O usucapião, como figura jurídica, complementa a posse. Está previsto nos artigos 1.238 a 1.242 do Código Civil brasileiro. A usucapião pode ser requerida após a posse por 15 anos, sem interrupção, de um imóvel (art. 1238), sendo este prazo diminuído para cinco anos, em caso de imóvel rural menor do que 50 hectares, desde que o posseiro ou posseira não possua nenhum outro imóvel e tenha estabelecido sua residencia habitual no imóvel pleiteado (art. 1239).
Assim, em resumo, a posse é o exercício direto, contínuo e racional de uma parcela de terra, sem que haja contestação deste direito por, no mínimo, cinco anos, se tratando de imóvel rural. O usucapião é o direito de solicitar legalmente a propriedade sobre a posse.
A dotação do Estado através da Reforma Agrária
A dotação de terras pelo Estado ocorre através da Reforma Agrária, legalmente instituída no país a partir de 1964, com a publicação do Estatuto da Terra (Lei. n. 4.504, de 30 de novembro de 1964):
“considera-se reforma agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”. (§1º, do art. 1º, da Lei 4.504/64 - Estatuto da Terra).
As grandes propriedades que não cumprem sua função social podem ser desapropriados para fins de Reforma Agrária. Neste caso, os imóveis passam pelas seguintes etapas: 1) vistoria; 2) desapropriação em caso de imóvel improdutivo; 3) ação legal de desapropriação, quando o valor do imóvel e das benfeitorias é depositado em juízo; 4) indenização ao proprietário; 5) imissão na posse e 6) seleção das famílias e criação do Assentamento Rural. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) pode desapropriar ou comprar uma propriedade para que ela seja objeto de redistribuição através da Reforma Agrária. Nos últimos anos, a maior parte das propriedades tem sido compradas pelo órgão e redistribuídas.
O INCRA mantém um cadastro para que qualquer pessoa que julgue fazer parte do perfil de possíveis beneficiários da Reforma Agrária possa inserir seus dados e aguardar o processo. O INCRA deveria classificar as famílias inscritas e logo assentá-las. Quando as famílias são assentadas, é criado um Assentamento, que deveriam receber crédito, assistência técnica e infraestrutura – o que nem sempre ocorre.
As terras são, inicialmente, cedidas às famílias, que recebem um Contrato de Concessão de Uso (CCU) por 10 anos. Durante este período, a terra é propriedade do INCRA e não da família, portanto, não pode ser cedida, alugada ou vendida. Todos os assentados pagam pela terra e pelos créditos recebidos do INCRA. Após 10 anos, as famílias recebem o Título de Domínio da propriedade, se tiverem cumprido todas as disposições legais. Neste momento, a terra é transferida permanentemente à família, que deve pagar a terra em parcelas anuais, durante 20 anos.
Apesar de todos os órgãos e instrumentos legais criados para realizar a Reforma Agrária, historicamente, foi a pressão e iniciativa popular que tirou a Reforma Agrária do papel. A partir da década de 60, com o surgimento das Ligas Camponesas, um movimento social organizado por trabalhadores rurais em todo o país, lançou-se o lema: Reforma agrária na lei ou na marra. Naquele momento, a Reforma Agrária vinha sendo debatida como uma das políticas prioritárias do então presidente João Goulart. Porém, após o golpe militar e o início da ditadura, este movimento foi sufocado a ferro e fogo. A pressão popular pela Reforma Agrária ressurgiu nos anos 80, quando começou o processo de redemocratização do país e, junto com ele, surgiram vários movimentos sociais no campo que reivindicavam a Reforma Agrária. Estes movimentos utilizaram a mesma tática empregada nos anos 60: ocupar as terras e exigir que o governo efetivasse a Reforma Agrária. Desde então, esta tem sido a tática utilizada pelos camponeses brasileiros para aceder à terra através das dotações do Estado.
[1] O termo "devoluta" relaciona-se ao conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado. Para estabelecer o real domínio da terra, ou seja, se é particular ou devoluta, o Estado propõe ações judiciais chamadas ações discriminatórias. A Constituição inclui entre os bens da União as terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental e à defesa das fronteiras, das construções militares e das vias federais de comunicação. As demais terras devolutas pertencem aos estados". In: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/81573.html; Acesso em 12 de dezembro de 2014.