O conflito de Cachoeirinha
O conflito de Cachoeirinha começou em setembro de 1964, em plena ditadura militar, num cenário de extrema repressão às classes populares urbanas e rurais do Brasil. Os senhores Sebastião Alves da Silva e Manoelito Maciel de Salles reivindicaram judicialmente 6.400 hectares de terra na região de Cachoeirinha. O Juiz de paz de São João da Ponte emitiu a decisão de desapropriação da terra. Os camponeses, instalados ali há séculos teriam que deixar sua terra e seu territorio.
A ação de despejo foi realizada no mesmo dia da emissão da ordem, 14 de setembro de 1964. Policiais e bandos armados a mando dos latifundiários participaram do despejo. Trinta e duas famílias foram expulsas com violência. Os camponeses entraram com uma ação judicial para retomar suas terras, três días depois do despejo, mas perderam. Algumas famílias decidiram abandonar o local, mas a maior parte permaneceu por perto e continou lutando pela posse das terras. Muitos, inclusive, retomaram suas terras. Viviam trabalhando a terra durante o dia, e dormindo escondidos na mata durante a noite.
Os campones continuaram lutando judicialmente contra os latifundiários, mas a justiça sempre deu ganho de causa aos grandes proprietários. Estes, por sua vez, não duviduram de realizar todo tipo de crueldade contra os camponeses.
Em 1967, grande parte dos posseiros haviam retornado para suas terras e viviam sob a ameaça constante dos latifundiários. Com um novo mandato judicial, os coroneis despejaram os camponeses. Mas, desta vez, não foram só 32 famílias, mas 212. Os coronéis e latifundiários se apossaram do dobro das terras que a decisão judicial afirmava que lhes pertenciam. Roubaram e queimaram a lavoura, as casas e tudo que pertencia aos camponeses. Cerca de 15 mil hectares de terras foram tomados pelos latifundiários.
“Nós resistimos de todas as formas. Mas o papagaio de carvoeiro, o Coronel Georgino, atiçava o tempo todo. A gente resistia pra não abandonar a terra. Ele mandava jagunço atiçar. A gente ia trabalhar e depois ficava escondido no mato. Só ficava no lote as mulheres e as crianças, algumas. Mas, mesmo assim eles mataram seis companheiros, o Antônio Manso, Ursino, Juarez, Marcionilo, Martim e o Preto Velho" (Sr. Sula, liderança histórica dos camponeses da Comunidade Cachoeirinha/Vitória).
Entre 1964 e 1971, o período mais violento do conflito, no qual os latifundiários fizeram de tudo para expulsar os camponeses, seis camponeses adultos foram assassinados. A vida dos camponeses mudou completamente após o Massacre.
“ A gente não tinha trabalho com salário, era tudo na base do mutirão, de um ajudar o outro. Aqui também a gente quase não comprava nada fora, a gente trocava com os próprios vizinhos. Mas depois que a gente foi expulso da Cachoeirinha tudo mudou. Tivemos que trabalhar por salários muito pequenos e comprar tudo. Além disso, nas fazendas grandes eles só produzem um tipo de coisa e principalmente gado, um tipo de gado que nem era daqui, trouxeram tudo de fora. Tudo isso mudou demais a vida da gente. " (Dona Nininha, remanescente da antiga comunidade Cachoeirinha e assentada na Comunidade Vitória).
Em 1968, os camponeses continuavam questionando judicialmente a posse das terras. Naquele ano, foram até Brasília para falar com o presidente Costa e Silva – em plena ditadura militar. O ditador prometeu “olhar o que fazer”. Mas nada foi feito.
Em 1971, após uma enchente do Rio Verde, as famílias ficaram isoladas, vivendo no mato, sem possibilidade de conseguir alimentos e 64 crianças acabaram falecendo.
“Porque o pessoal não tinha casa, não tinha cama pra pôr as crianças. Ficou lá deitado debaixo dos paus, no relento, no sol, no sereno, deitado no chão forrado de jornal, com fome. Inclusive é através disso tudo é que traz a nossa luta por essa terra, a implicância por essa terra. É porque não foi só a terra, foi o sofrimento do povo". (Depoimento de Sr. Sula, remanescente da luta de Cachoeirinha)
O mais chocante para a comunidade da região foi a morte de 64 crianças. As mortes ocorreram em virtude da situação de miséria e dificuldade enfrentada pelas famílias. Desde 1964, muitas famílias camponesas passaram a viver escondidas no mato, tentando plantar e colher em suas antigas terras, fugindo e se escondendo da policía, dos latifundiários e seus bandos armados. Devido a isto, na região, o conflito é conhecido e chamado de Massacre de Cachoeirinha, pois para a população local as mortes, a perda das terras, de seu modo de produção de subsistencia e de sua forma de reprodução social significou a maior violencia que poderia ser cometida. Sr. Sula conta que “As mulheres ficaram loucas ao perder os fihos e botaram fogo nas fazendas".
Também, na mesma época, o preto velho Martim Fagundes, uma das lideranças dos camponeses foi fuzilado na cidade de Janaúba.
A desapropriação em 1983
Os camponeses seguiram lutando pela posse das terras de Cachoeirinha por décadas. Nos anos 1980, o poder da ditadura militar e dos coronéis começava a decair e o movimento pela redemocratização tomou muita força. Era o momento ideal para retomar a Cachoeirinha.
“Em 81, a gente não aguentava mais e junto com quase 80 famílias decidimos retomar uma parte do nosso territorio. Entramos e começamos a preparar o plantio. Tivemos muito apoio, de todo lado, de Montes Claros, Belo-Horizonte, de Minas Gerais inteira. Mesmo assim a policía veio e prendeu 10 companheiros. Nós continuamos aquí, resistindo. Não saímos" (Geraldo Lageado, assentado na Comunidade Vitória).
Os camponeses pediram a Tancredo Neves, então candidato a governador, o compromisso de desapropriar as terras para os camponeses. Em 1983, Tancredo foi eleito. Em 06 de outubro do mesmo foi emitido um decreto declarando “de utilidade publica, para desapropriação de pleno domínio, áreas de terras e benfeitorias situadas no 8° ?distrito de Cachoeirinha, município de Varzelândia”. As terras estavam em péssimo estado e puderam assentar apenas 55 famílias.
Em 1983, uma nova ocupação levou 39 famílias à fazenda Catité para plantar, também na região de Cachoeirinha. Recomeçaram as negociações, mas só duas fazendas foram, finalmente, desapropriadas: 33 famílias na Catité, com 25 hectares cada uma e 45 famílias na União, com 6 hectares. Cento e vinte e duas famílias restantes ficaram pelo caminho, entre cadastros e burocracias. Estas famílias passaram a fazer parte de um esquema cruel. Um dos líderes do movimento criou uma lista de espera com estes nomes, passou a cobrar a inclusão de nomes e mais nomes nesta lista de espera, gerando intrigas e desmobilização na luta pela terra na região.
Estas manobras com o cadastro duraram anos, até que em 1995, essa liderança teve sua influência neutralizada. A Liga dos Camponeses Pobres estava começando a se estruturar no Norte de Minas de Gerais e organizou 212 famílias constante da famosa lista de inscrição. Elas ocuparam a sede do Distrito de Irrigação no Mocambinho e acamparam na beira do rio São Francisco, exigindo as terras negociadas com a Companhia de Desenvolvimento do Vale do rio São Franscisco. Estas 212 famílias já não eram os antigos moradores de Cachoeirinha, expulsos em 1964, mas familiares e pessoas que haviam chegado à região e também precisavam de terras.