Caracterizada pela ocupação tradicional, a região sul fluminense é marcada por intensos conflitos por terra a partir dos anos 1970. No entanto, o histórico de luta pela terra da comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí remete ao século XVI, com o início da ocupação da região. Dois ciclos econômicos de inserção periférica no sistema mundo, o do ouro e o do café, marcaram a formação socioespacial da região. Durante o século XVIII, a região serviu de ponto de escoamento do ouro que vinha de Minas Gerais, através da Estrada Real, para ser enviado à Portugal. Com a ascensão da atividade cafeeira na região do Médio Vale do rio Paraíba do Sul, na outra vertente da Serra do Mar, no interior do continente, os portos do litoral sul do Estado continuaram exercendo importante função no escoamento de produtos.
No entanto, mesmo com a criação de caminhos alternativos para o escoamento de mercadorias, em outros pontos do litoral fluminense, a região seguiu com os portos funcionando ativamente. Isso porque a região é marcada pelo tráfico ilegal de negros escravizados no período pós 1850[1]. Nesse período, o tráfico ilegal, a produção de aguardente e a cana de açúcar eram as principais atividades econômicas da região. Essas atividades trouxeram impacto direto na ocupação e criação de redes de comércio. Cerca de 30.000 indivíduos negros escravizados expulsos de suas terras em África foram trazidos pelas forças escravocratas para a região entre os anos 1800 e 1830.
O aumento da fiscalização com o fim do tráfico legal somado à crise do café no estado do Rio de Janeiro impactaram diretamente a produção de aguardente e as plantações de cana de açúcar. Dessa forma, no início do século XX, o cenário de perda de interesse econômico na região com o fim da escravidão, como prática legal do Estado, fez com que as terras do sul fluminense fossem perdendo interesse.
As primeiras gerações da comunidade do quilombo Santa Rita do Bracuí garantem o acesso à terra neste contexto. No entanto, é somente com a retomada do interesse sobre as terras da região sul fluminense, na segunda metade do século XX, que a comunidade se reconhece como quilombola e desenvolve estratégias de r-existências para garantia de permanência em seus territórios de vida.
O acesso à terra em Santa Rita do Bracuí remete ao período do fim da escravidão no Brasil, nas últimas décadas do século XIX. A doação da terra pelo fazendeiro proprietário José de Souza Breves é considerado o primeiro marco temporal e territorial para pensar a formação da comunidade. O testemunho do antigo fazendeiro deixa algumas informações relevantes aos trabalhadores escravizados que residiam em sua fazenda, como a doação da terra aos mesmos; as áreas de uso comum, acessíveis a todos os moradores e moradoras; e a divisão das terras entre os ex-escravos da fazenda, com áreas que variam de 1 a 5 alqueires.
Apesar de constar na memória da comunidade, elemento fundamental na formação sócio espacial do quilombo Santa Rita do Bracuí, o testemunho do antigo fazendeiro só foi utilizado como estratégia de luta a partir dos anos 1970.
Alguns conflitos fundiários marcaram a luta pela permanência da terra dos integrantes da comunidade ao longo do século XX, implicando processos de desterritorialização de parte da população. Disputas por terra/território durante este período inauguram um processo de maior organização da comunidade frente às disputas pela permanência na terra. O histórico de lutas travadas por diferentes gerações é marcado por grilagens, criação de associações que buscavam tomar as terras e processos jurídicos contrários aos seus interesses.
No entanto, até o final dos anos 1960 a comunidade permanecia com boa parte do território que ocupava tradicionalmente. A fragmentação do território, após diversos processos de luta e resistência, se inicia na década de 70.
Isso porque entre o final do século XIX e o início do século XX a região da Costa Verde ficou isolada dos processos de urbanização e integração regional, em escala estadual e nacional. Do ponto de vista econômico, a retomada de crescimento regional no sul do Estado do Rio de Janeiro só se deu na segunda metade do século XX, principalmente durante os anos da ditadura civil militar que trouxe profundas transformações no território nacional. Neste contexto, o desenvolvimento através de obras de infraestrutura, industrialização e rodovias de integração nacional trouxe marcantes modificações na paisagem do sul fluminense e ocasionou em conflitos territoriais ao longo dos municípios de Angra dos Reis e Paraty.
Alguns dos projetos de desenvolvimento mais marcantes do período na região foram a instalação do estaleiro Verolme (atual BrasFELS); as usinas nucleares Angra I e II; o Terminal da Ilha Grande – Petrobras; e a obra mais impactante, a construção da rodovia Rio-Santos ou BR-101. A rodovia foi determinante ao alterar as dinâmicas de ocupação e circulação, além de resultar em um processo de especulação imobiliária e conflitos territoriais entre o signo do progresso e os povos e comunidades tradicionais que habitam a região. Todas essas obras, na sua construção, atraíram para a região milhares de trabalhadores que, terminadas as obras, permaneceram na região em situação de desemprego, um legado perverso que ainda hoje marca a região.
Por atravessar todos os municípios do Sul Fluminense, a construção da BR 101 alterou a dinâmica de diversas áreas, seja através de remoções diretas ou pela especulação e ocupação de suas margens, por condomínios de luxo ou populações que foram expulsas de outras localidades.
Assim, a partir dos anos 1970 podemos observar uma série de conflitos em toda a região, especialmente aqueles relacionados a especulação imobiliária; a construção de condomínios de luxo e casas de veraneio; implementação de grandes empreendimentos turísticos; existência de reservas ambientais, de um lado e, de outro, os povos e comunidades tradicionais, sejam camponeses de vários matizes, como os caiçaras, além de povos indígenas e quilombolas.
A intensidade de conflitos fundiários na região, a partir dos anos 1970, relacionados à abertura da rodovia, nos levam a refletir como o processo de modernização e integração trata populações já estabelecidas como populações inexistentes. O processo que foi promovido na época trouxe graves consequências para esses grupos, que se encontravam em seu caminho e em situação de vulnerabilidade, devida a ausência de titulação de suas terras, como é o caso dos integrantes da comunidade de Santa Rita do Bracuí. Situação comum, aliás, àqueles que cuja existência se formaram à margem do Estado.
Os impactos desse processo de invasão de territórios estão presente em diversos relatos, como no de Manoel Moraes, quilombola de Santa Rita do Bracuí, que diz:
“A estrada... essa daí quando chegou, chegou derrubando tudo. Derrubou mais foi muito bananal e cortou a vida da gente no meio, pois riscou a fazenda de Santa Rita em dois pedaços.”
A BR-101 foi construída sobre o território quilombola, dividindo-o em dois e afetando de forma violenta a vida daqueles que não foram sequer consultados, complementa sr. Manoel:
“De primeiro, eu mais minha primeira família morava lá em cima do morro, ali perto da pousada, já entrando pro sertão, do lado esquerdo do rio, mas apareceu uma rachadura na minha casa, por conta de uma rachadura no morro…”
Assim, as condições para se viver foram sendo destruídas, continua sr. Manoel, que demonstra atenção e conhecimento da natureza e dos impactos das mudanças ao seu redor:
“Eu não sabia o que era aquilo mas podia ser por causa da estrada, a estrada cortou uma água que eu mais minha família bebia, desviou o curso da natureza né, então podia ser por causa disso.”
Dessa forma, vítimas da invasão, as famílias se viram obrigadas a buscar soluções para continuar existindo, muitas vezes, obrigadas a sair de suas casas, em um deslocamento forçado pela impossibilidade de continuar no mesmo lugar, condições que configuram uma situação de expulsão ou despejo. Conclui assim o seu relato, sr. Manoel:
“Fiquei com medo, o buraco era muito grande. Então resolvi descer... desci e fui morar no mesmo rumo mas pro lado da beira mar, perto da igreja de São José, num lugar que meu pai tinha costume de fazer as roças dele. Porque aqui a gente tinha o lugar de morar e tinha também o lugar de fazer a roça, plantar... então fui morar lá”. [2]
No decorrer dos anos 1970 e 1980 a comunidade passou pelo período de maior fragilidade para permanecer no território. As obras da rodovia, as construções imobiliárias e os projetos de desenvolvimento foram acompanhados de desapropriações e deslocamento de muitas famílias. O retorno do interesse econômico na região trouxe fazendeiros para a região, o que fomentou a venda de terras e resultou em perdas territoriais para comunidade de Santa Rita do Bracuí.
O depoimento da falecida moradora da comunidade, Dona Joana Azevedo, nos mostra o combate às práticas de desterritorialização respaldadas pelo estado, no período de maior conflitividade na região. Associada à eliminação das condições de reprodução da vida para a população quilombola, a especulação fundiária promovida pela abertura da rodovia trouxe fazendeiros para a região, o que resultou em mais pressões sobre as terras quilombolas. Dona Joana, assim relatou uma dessas situações:
“Um dia chegou um homem aqui, de terno, pasta, boa veste e disse que era oficial de justiça. Veio acompanhado de mais oito homens que pelo jeito que tava vestido nós via que era polícia. Chegou, bateu aí na minha porta e eu fui atender, então ele disse: Dona Joana, eu sou oficial de justiça e sobrinho do chefe que comprou Bracuí. A senhora sabe que tem muita gente sendo despejada daqui porque meu tio comprou essa terra e é dono daqui.”
Muitas das vezes essas pressões dão-se pela legalidade, através de oficiais de justiça ou mandatos, mas geralmente confundem-se com o abuso do poder e exercício privado da violência. A grilagem de terras, processo fraudulento de obtenção da propriedade de terra é também prática comum nesses casos. De todo modo, o que importa aqui é que se ignora a existência da comunidade e dos quilombolas como legítimos posseiros da terra, e aplicam-se às mais variadas formas de violência para exercer a expropriação de suas terras. Dona Joana continua relatando as palavras do oficial:
“Vim aqui avisar pra senhora que se dentro de dezessete dias a senhora não sair daqui nós voltamos aqui e botamos fogo na sua casa, então é bom a senhora sair daqui por bem porque de outro modo a senhora sai por mal e de qualquer jeito, sem casa, sem nada que nem o resto do pessoal que teimou com a gente. A gente tira as coisas da senhora da casa e bota fogo nela!
A dignidade presente da corajosa resposta de Dona Joana ao oficial demonstra também a capacidade de resistência que a comunidade quilombola possui ao afirmar sua ancestralidade enraizada no território:
“Então eu disse assim; ô doutor, vou falar uma coisa pro senhor; nessa casa nasceu meu bisavô, meu avô, meu pai, eu e meus irmãos... se senhor quiser vim aqui pra tomar um café, comer uma comidinha de pobre o senhor é bem recebido, mas se o senhor tá pensando em botar fogo na minha casa, fique sabendo que não entra nela não! Nem o senhor nem ninguém do governo! ”
E, como símbolo da resistência quilombola frente às ações violentas respaldadas pelo Estado, Dono Joana conclui:
“(...) Porque quem manda na minha casa primeiro é Deus, depois eu e depois o meu marido! Minha casa é pobre, mas exijo respeito. O senhor botou fogo na casa da Deodato, na casa do Diniz, e saiu campando, mas na minha não põe não que eu não deixo. Posso respeitar o senhor como homem, mas não como agressor. O senhor fez e faz isso com essa gente porque eles calçam sapato da biqueira pro calcanhar mas comigo o senhor não vai fazer isso não! ” (Joana Azevedo dos Santos: fevereiro de 2009 apud MATTOS et.al., 2009, p. 70) ”.
No último quartel do século XX, portanto, a comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí enfrentou conflitos fundiários que resultaram em processos de desterritorialização e perdas territoriais. Alguns casos emblemáticos marcam a memória dos quilombolas, como a construção do Condomínio Porto Bracuhy, que ocasionou processos de demarcação territorial, instalações de porteiras e perda da qualidade da água do rio Bracuí, além de questões subjetivas relacionadas ao afeto dos moradores com os espaços de vivência, que à medida que o progresso ingressava na região, iam se perdendo.
Para a efetivação das obras do Condomínio, a empresa responsável fez uso de pedras e seixos do alto curso do rio, prejudicando o leito e as margens. O depoimento de um dos integrantes da comunidade é categórico:
“Foi muito triste ver a destruição chegando sem poder fazer nada! Era margem, era pedra, era areia, tudo sumindo! O rio grande sempre nos tirou do aperto porque na entressafra da roça era dali que a gente tirava nosso sustento. Tinha muito peixe e camarão. A água era limpa, uma beleza! Foi indo eles acabaram com o rio... E todo mundo também ficava com medo por causa das enchentes, o rio já dava muito susto na gente na época de chuva. Com tanta destruição o que é que ia acontecer? ” (Rita Adriano da Silva: abril de 2009 apud MATTOS et. al., 2009, p. 76)
Como ato de resistência aos impactos do progresso, registra-se o cordão humano que ao reunir 56 pessoas conseguiu impedir a entrada de máquinas que trabalhavam na extração de pedras e seixos. Violentamente reprimido pelas forças policiais do estado, o protesto teve intervenção da polícia.
Neste mesmo período, em uma dimensão sociocultural, a comunidade enfrentou um processo de adormecimento e retomada da prática cultural do Jongo e começou a desenvolver a luta emancipatória através da ancestralidade. Relatos de quilombolas mais antigos da comunidade nos mostram que no contexto de conflitos acima evidenciado, com a pressão dos empreendimentos e projetos, os moradores trabalhavam nas casas dos sujeitos brancos que tinham condição financeira de manter um lugar privado nos condomínios de luxo da região, além de empregados para a realização das demandas da casa.
Dessa convivência, com o racismo escancarado nas relações sociais de poder, a condição de subalternidade em que os corpos negros são colocados em relação à figura do “patrão”, se torna evidente. Neste contexto, perdem-se as forças para a realização dos rituais de jongo e demais práticas de reverência à ancestralidade.
Nos anos 1990, contudo, os processos de desterritorialização e conflitos fundiários em que estava envolvida a comunidade de Santa Rita do Bracuí evidenciaram também processos de r-existência. A luta constante pela permanência em seus territórios de vida, resistindo para existir diariamente, encontrou na ancestralidade, com elementos da memória oral e da etnicidade, alimentos para a construção de um senso de coletividade em torno da identidade quilombola. Motivada pela nova constituição brasileira que reconhecia a titulação de comunidades remanescentes de quilombos, a comunidade de Santa Rita do Bracuí retoma as forças através da organização em torno da ancestralidade e conquista em março de 1999 o reconhecimento de comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares, um passo importante para a titulação de suas terras.
O fato de ainda não ser uma comunidade titulada torna sua situação semelhante à de centenas de quilombos ao redor do território brasileiro. Mesmo após a publicação do laudo antropológico e demarcação das fronteiras, a comunidade aguarda o andamento do processo de desapropriação.
Neste processo, em 2005, é fundada a Associação dos Remanescentes de Quilombo Santa Rita do Bracuí (Arquisabra), que concentra esforços na luta pela titulação e vem auxiliando a criação de estratégias pela comunidade através do jongo, das intervenções na escola municipal (localizada nos limites da comunidade), da tentativa inicial de turismo, dentre outras. Auxilia também no enfrentamento aos conflitos que ainda se fazem presentes na comunidade, consequência das perdas territoriais sofridas nas últimas décadas do século XX.
No decorrer dos anos iniciais do século XXI, a comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí vem enfrentando dilemas e conflitos em seu processo de territorialização. A organização comunitária em torno da identidade quilombola, certificada e em processo de titulação, possibilita maior mobilização frente aos embates, transformando a comunidade em um interlocutor importante na região.
Neste cenário, os dilemas e conflitos mais marcantes são aqueles vinculados ao laudo de demarcação territorial do INCRA, os conflitos hídricos envolvendo o rio Bracuí, além de conflitos que evidenciam o processo em curso de branqueamento do território, através da presença de imigrantes e da prática do racismo estrutural, enraizado na sociedade brasileira.
Em contrapartida, a comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí, em seus processos de r-existência, possui elementos inspiradores na luta pela terra/território, a saber: a organização em torno da ancestralidade na formação da identidade quilombola; a memória oral como elemento fundamental na formação territorial da comunidade; a retomada do jongo como prática cultural de matriz negra, importante na luta contra o racismo e o branqueamento do território; a recuperação das roças com estratégia de luta territorial; ações na escola municipal Áurea Pires, localizada no território da comunidade, além da articulação com outras comunidades tradicionais (indígenas, negras e caiçaras) no fórum das comunidades tradicionais, que reúne grupos de Angra dos Reis/RJ, Paraty/RJ e Ubatuba/SP.
[1] Ano de publicação da Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de negros em situação de escravidão para o Brasil.
[2] Depoimento retirado de Manuel Moraes, 2009. (Manoel Moraes apud MATTOS Et.al., 2009, p.68/69)