Dessa identidade coletiva, expressa no termo “quilombola”, a comunidade de Santa Rita do Bracuí, como vimos, é atravessada por conflitos territoriais. No entanto, os elementos formadores da identidade coletiva somados às estratégias de r-existência evidenciam a experiência inspiradora que é a comunidade no que se refere à luta pelo acesso à terra e ao território na América do Sul.
São as práticas cotidianas frente às pressões constantes, através de estratégias para a permanência do território, que caracterizam a comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí. As formas e práticas de resistência, mobilizadas em estratégias territoriais, configuram-se como práticas de r-existência, através de práticas e estratégias que garantem a continuidade do grupo no território.
Nesse sentido, a organização em torno da ancestralidade na formação da identidade quilombola e a memória oral, enquanto elemento fundamental na formação territorial da comunidade, são características da comunidade que somam ao qualificar como inspiradora sua experiência de luta pelo acesso à terra.
Sob a perspectiva do Conviver Habitando, a comunidade tem uma organização em torno da ancestralidade para a luta territorial. O auto reconhecimento da identidade quilombola se dá através da memória oral, que passa, de geração em geração, os valores da resistência frente aos conflitos territoriais e o embranquecimento do território. Com os “imigrantes” e o trabalho diário muitas vezes realizado fora da comunidade, a memória oral e a ancestralidade são fundamentais para a manutenção da identidade coletiva e na permanência em seus territórios de vida, bem como na garantia da reprodução material e simbólica da vida.
Nesta perspectiva, Marilda de Souza Francisco, mulher e liderança ativa da comunidade, é a maior representação da memória oral no Quilombo de Santa Rita do Bracuí. Uma das diretoras da ARQUISABRA, Marilda exerce papel vital nas relações internas da comunidade em que é reconhecida pelos moradores como uma liderança, e também nas relações externas. Além de receber pesquisadores e pesquisadoras em sua residência, observam-se em sua área elementos territoriais que remetem a várias características do quilombo, tais como a agrofloresta, plantação de mudas de palmito Jussara, placas da história da comunidade, a mandala onde são cultivados diversos legumes e hortaliças, criação de animais, além de uma trilha por onde ela caminha com os visitantes, contando a história da região e da comunidade.
Marilda exerce ainda papel fundamental na Escola Municipal Áurea Pires da Gama, localizada na entrada do território da comunidade, nos limites da BR - 101. Funcionária da escola, Marilda possui uma visão que contempla a educação como uma das principais estratégias de r-existência do quilombo. Durante todos os anos trabalhados na escola ela exerceu um papel de elo entre a comunidade escolar (diretores, professores, funcionários, alunos e até prefeitura e secretaria de educação) e a comunidade Remanescente de quilombo de Santa Rita do Bracuí.
Importante na permanência da memória oral na comunidade, Marilda é reconhecida politicamente em Angra dos Reis e ganhou diversas homenagens pelo seu papel na luta pelos direitos sociais, e pela sua atuação contínua na escola. Marilda atua não só na defesa da comunidade, mas representa um projeto político educacional popular e comunitário, resgatando elementos clássicos da educação popular, e criando possibilidades para uma educação voltada para experiência e formação humana.
Como expressão da relevância da ancestralidade e da memória oral na comunidade, o Jongo aparece como elemento fundamental e sua retomada enquanto prática cultural na comunidade é importante na luta pela terra e a permanência da comunidade de Santa Rita do Bracuí, assim como na luta contra o racismo e o branqueamento do território.
A manifestação remete à ancestralidade do povo negro como resistência, tendo como característica seu estilo extremamente metafórico que tem o objetivo de ocultar real sentido das expressões aos que não estão “autorizados” a compreendê-la. A comunidade é responsável pelo resgate cultural do Jongo como forma de manifestação identitária e pelo seu resgate em diversas outras comunidades quilombolas na região, chegando a ser conhecida como Comunidade de Resistência Jongueira. Em Santa Rita do Bracuí, o jongo é tido como um pedaço da África, como memória e ancestralidade, e funciona como elemento agregador no presente e fornece esperança para o futuro.
Sobre o sentido atribuído ao Jongo, uma das lideranças políticas que integra a Associação dos Remanescentes do Quilombo de Santa Rita do Bracuí – Arquisabra - avalia que para se falar do jongo é preciso falar do significado de comunidade:
“[...] a comunidade quilombola pra mim, na minha cabeça, quando os nossos antepassados foram sequestrados, eles sabiam que não voltariam pra lá. Então, eles deixaram pra nós essa herança, esse território, deixaram um pedacinho daquela África pra nós. [...] Esse aprendizado, essa cultura, esse modo de pensar que a gente tem no quilombo. E o jongo está incluso nisso. ”
E continua abordando a relação do jongo com o território e a ancestralidade, passada através da memória oral - elementos fundamentais na luta pelo território em Santa Rita do Bracuí:
“Pra mim, o jongo é o território; pra mim, o jongo é saudar os antepassados. Pra mim, o jongo é agradecer a esses antepassados por eu ter uma raiz, por eu ter uma memória. o jongo é um bem maior, uma preciosidade que foi deixada pra nós pra gente tá sempre lembrando daqueles que se foram, daqueles que estão, e dos que estão por vir, pra que a luta nunca morra, pra nunca esquecermos quem fomos e quem nós vamos ser.”
Nestes inúmeros elementos inspiradores, a recuperação das roças é um dos mais relevantes. No que se refere a agricultura, a comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí, por contar com uma população que hoje trabalha, majoritariamente, fora do território, ainda mantém práticas agrícolas como modo de sobrevivência, na forma das roças, em suas propriedades.
Na casa de Marilda e Valmir, na margem do rio Bracuí, há um sistema agrícola em forma de mandala que produz verduras, hortaliças e conta com um galinheiro ao centro, repleto de galos e galinhas e a garantia de ovos diários.
As práticas tradicionais de uso da terra, vinculadas ao manejo ou uso de recursos e a presença da biodiversidade são traços comuns em distintas comunidades quilombolas que tem na convivência com a natureza uma relação de harmonia. Dessa forma inúmeras comunidades se encontram em áreas de proteção ambiental, com grande biodiversidade e conhecimento profundo da etnobotânica. Em Santa Rita do Bracuí é possível observar vários elementos que estão relacionados a práticas territoriais, e produção de alimentos, além da biodiversidade associada a traços e símbolos do grupo.
A manutenção e recuperação das roças da comunidade é uma prática que carrega grande importância e pode ser encarada como um elemento de reterritorialização do grupo, associada ao saber sobre a terra dos moradores mais antigo. No caso da Comunidade de Santa Rita do Bracuí esse é um dos elementos que aparece como símbolo de r-existência da comunidade, à medida que através das roças há troca de saberes e autonomia alimentar.
É uma prática que envolve uma profunda relação da comunidade com a natureza, construída em séculos de convívio, que se caracteriza pelo domínio dos conhecimentos da biodiversidade local, definindo limites entre as práticas comunitárias quilombolas e as práticas da agricultura convencional. Além disso, a prática contribui de maneira decisiva na manutenção do território. São formas de garantir a comida e a cura e, para além disso, o território e a própria organização da comunidade.
Segundo o Laudo Agroambiental cerca de 45% dos moradores ainda mantém roças, grandes ou pequenas, em suas propriedades. Essa é uma das práticas que caracteriza o uso tradicional das terras quilombolas e, portanto, é instrumento da luta pela demarcação do território quilombola: onde há roça de quilombola, há território quilombola.
Ademais, a prática mantém certas características que dão forma à comunidade, podendo ser entendidos como elos de uma só corrente. A diversidade da produção é um desses elos. Além dos gêneros principais como aipim, milho e cana, são cultivadas as agroflorestas nas quais encontram-se jaca, coco, cacau, limão, abacaxi, goiaba, laranja, banana, juçara e pupunha, além de hortaliças diversas. Outro desses elos é preservação e recuperação da degradação das terras, como mostra o trabalho de cartografia participativa, promovido junto à comunidade por Gabriel Corrêa (2018). Na imagem 4, podemos visualizar como a comunidade percebia a monocultura no período de auge da produção de banana, interrompida no período da construção da BR - 101.
Os mapas produzidos pelas comunidades sobre seu passado mostram o território preenchido por dois grandes monocultivos que dominavam as terras da região, a cana e a banana. Essas práticas de monocultura produzidas para o mercado, principalmente para exportação, degradam o solo da região. Mesmo assim, muitas roças permaneceram em quintais, nos quais a diversidade se manteve. A recuperação das roças agiu, nesse sentido, como forma de melhoria na qualidade do solo, além de ter sido desenvolvida através das práticas e conhecimentos preservados nas roças de quintais e projetos em parceria com outras instituições.
No processo de mapeamento, foi possível perceber que muitos moradores da comunidade agiram na recuperação do solo e continuaram suas produções, seja através de roças e/ou da agricultura ecológica. Isso acontece tanto em pequena escala, em casa de moradores que plantam pequenas hortas no quintal, como nas áreas das famílias mais antigas que ainda possuem hectares maiores com possibilidade para destinar uma grande área para plantio. Existem áreas mais amplas que combinam diversas árvores frutíferas que dão jaca, coco, cacau, limão, abacaxi, goiaba, laranja, banana, entre outros.
No processo de mapeamento, foi possível perceber que muitos moradores da comunidade agiram na recuperação do solo e continuaram suas produções, seja através de roças e/ou da agricultura ecológica. Isso acontece tanto em pequena escala, em casa de moradores que plantam pequenas hortas no quintal, como nas áreas das famílias mais antigas que ainda possuem hectares maiores com possibilidade para destinar uma grande área para plantio. Existem áreas mais amplas que combinam diversas árvores frutíferas que dão jaca, coco, cacau, limão, abacaxi, goiaba, laranja, banana, entre outros.