No que diz respeito aos dilemas e conflitos no processo de territorialização da comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí, no decorrer do século XXI, segundo Corrêa (2018), o laudo de delimitação territorial produzido pelo INCRA é um dos mais relevantes. Isso porque refere-se a um documento que se transforma em ferramenta dos quilombolas, mas também apresenta dilemas para própria comunidade em seu processo de fortalecimento político e demarcação territorial.
Se nos apoiarmos naquilo que os integrantes da comunidade revelam, podemos assinalar que as linhas que constituem a delimitação da área demarcada não representam a territorialidade da comunidade remanescente quilombola de Santa Rita do Bracuí, pois a área de influência e apropriação vai muito além do que foi posto no documento.
A fala de João[1], uma das lideranças quilombolas da comunidade, é exemplar neste sentido:
“Então quando eu falo que a área reivindicada hoje é uma coisa, e o quilombo é outra coisa, não tô separando uma coisa da outra, estou dizendo, que, embora tenha áreas que não são reivindicadas, mas que tem reminiscência histórica, pode ser religiosa, engenho, uma coluna que serviu para alguma coisa, que está lá, e foi uma construção da época, da época que nosso povo era escravizado aqui, se têm isso, ela também pertence ao quilombo, porque desde que esteja dentro do território, dentro das terras que foram da fazenda Santa Rita, porque dentro dessas terras, dentro do quilombo, essas terras, não sei mais agora o número de hectares, mas ela pegava de um ponto a outro, e era grande demais. Dentro do quilombo, das terras de fazenda Santa Rita, existem vários locais de reminiscências. Embora não estejam sendo reivindicados, ainda eram do quilombo, ainda são do quilombo. ”
João continua defendendo que, por mais que não haja reivindicação por parte da comunidade para a apropriação das áreas com reminiscências históricas e símbolos da memória e ancestralidade dos quilombolas, os espaços afetivos com marcas do passado devem ser preservados. Isso independe do sujeito que detém a propriedade daquela terra.
“As terras que foram reivindicadas foram escolhidas para entrar no processo de regularização fundiária a favor da comunidade quilombola. Então quando eu falo que o território reivindicado é uma coisa, e o quilombo é outra, não estou separando (...) eu estou tentando agregar, aquelas partes que não são agregadas, mas que tem reminiscências é, dentro dá fazenda Santa Rita. Porque ficaria muito fácil o cara falar lá, porque tem monumento histórico, tem lá na Bracuí lá, igual tem aqui, que tem local lá que a gente não reivindicada mesmo tendo os pilares antigos, ai fica fácil o cara falar assim “eu posso tirar isso aqui, eu posso acabar com isso aqui porque os quilombolas não estão reivindicando” e não, aquilo tem importância sim, porque é o território enquanto terra da Santa Rita, isso tem importância, até porque, no decreto e na regularização do decreto, isso tem que ser preservado, entendeu? Esses monumentos históricos, essas coisas todinhas, têm que ser preservado, isso não pode acabar (...)”
Portanto, João conclui ao afirmar que, na visão dos integrantes da comunidade,
“(...) a pessoa que ocupar essas áreas tem que ter consciência que os locais de reminiscência história têm que permanecer intacto (...). ”
Assim, fica clara a noção que a comunidade tem da área e dos limites de seus territórios. Para os quilombolas de Santa Rita do Bracuí, a área da comunidade que foi deixada no testamento de José de Souza Breves recobria uma região muito maior que a delimitada no laudo do INCRA. A comunidade entende a perda dessas áreas como fruto da não regularização da terra no período pós-abolição, e que esse território ainda que não reivindicado continua sendo área do quilombo.
Marcas da ancestralidade e da memória afetiva dos quilombolas da comunidade são encontradas em boa parte do território que vai além daquele delimitado pelo INCRA. São Igrejas, o cemitério, antigas construções e outras formas de representação do território quilombola. Assim, ressaltar que o quilombo vai além da delimitação, implica ter consciência de que as memórias precisam ser preservadas, e os “imigrantes” que vivem nessas áreas não podem degradá-las ou ignorá-las.
Consequência das perdas territoriais de outrora e a ambiguidade da demarcação realizada pelo INCRA, a comunidade vive hoje com a presença de “imigrantes”, caracterizados como moradores da região do quilombo de Santa Rita do Bracuí que não fazem parte da comunidade quilombola. A relação nem sempre harmoniosa entre as categorias sociais que habitam Bracuí é marcada pelas diferentes visões de mundo e gestão territorial. A visão que a comunidade projeta sobre si e o território que ocupa é distinta da visão dos imigrantes, o que gera posicionamentos diferentes entre a ARQUISABRA e a Associação de Moradores do Bracuí.
O controle e influência sobre os limites físicos e simbólicos é fator fundamental no processo de territorialidade da maioria das comunidades tradicionais no Brasil. No que se refere à demarcação, áreas de reminiscência histórica e usos tradicionais da comunidade de Santa Rita do Bracuí ficaram de fora, resultando na perda do controle sob os espaços históricos da comunidade. Essas perdas afetam a territorialidade do grupo, pois resultam em apagamento de referências territoriais, e do controle de suas fronteiras (físicas e simbólicas) bem como limitação da sua forma de gerir o território. Assim, observa-se o apagamento das memórias grafadas no espaço, gerando o processo de branqueamento do território que atravessa a comunidade
Os conflitos pelo uso do território, portanto, são estabelecidos entre os imigrantes e os integrantes da comunidade quilombola. Fruto da especulação imobiliária da região e da chegada do progresso à região, que tem a BR-101 como símbolo, a comunidade negra convive com a inserção do contingente branco e imigrante nos territórios da comunidade. Como consequência deste processo, através de conflitos pelo uso da terra e da água, a comunidade revela o aumento da poluição do rio Bracuí, a perda de espaços de memória e as tentativas de embranquecimento do território por práticas racistas nas relações sociais da região. Ao colocar as práticas sócio territoriais dos quilombolas como inferiores, os imigrantes ignoram as formas de ser/estar no mundo da comunidade quilombola. O fazem na relação com os jovens negros da região, alvos de preconceito recorrente; nas formas de uso e gestão territorial, com a poluição e fechamento dos acessos ao rio, construção de muros e os conflitos pelo asfaltamento das estradas; na propriedade da terra, em um contexto em que deixa de ser bem comum e transmitido por acordos verbais e passa a ser reconhecida pelos documentos de propriedade.
Marilda, liderança importante da comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuí, em depoimento gravado em 2017, por Gabriel Corrêa, nos mostra como a relação com os imigrantes é marcada também pelo racismo:
“Ainda tem a questão do preconceito com os negros né? Ah por que não tem asfalto? É por causa dos negros, dos quilombolas que gostam de andar na lama. Então joga essa parte para o lado da cor da pele. Então, só porque a gente só não quer o asfalto, ou não quer alisar o cabelo, ou não quer isso, ou sei lá o que, aí joga pra cor da pele “Ah porque aqueles negros lá, os quilombolas”. Então tem essa visão do preconceito, a gente ainda ouve muitas brincadeiras que eles dizem que é brincadeira, mas é uma brincadeira maldosa”
Nesse contexto, os muros e cercas tomam espaço e surgem na paisagem da região. Como forma de delimitar o que pertence a cada pessoa ou família, os muros e cercas representam a propriedade privada da terra. Marilda, integrante ativa da comunidade de Santa Rita do Bracuí, avalia que “as áreas com ausência de delimitação, consideradas como bens comuns, são invadidas por quem vem de fora. Estes possuem uma visão associada à propriedade privada, e dessa forma cercam as entradas, impedindo o acesso à cachoeira.”.
“Hoje você já vê mais cerca, porque pessoal cria o gado, e ele fica passando. Mas antes nem cerca tinha, as pessoas diferenciavam seu terreno do outro, por algum ponto, árvore, ou algo assim, e se tivesse um pedação ficava pra qualquer um assim. Hoje não pode mais fazer isso, igual o moço ali, cercou a cachoeira que pertencia a nós, e agora ele cercou até em cima e disse que é dele. E ele disse “não tava cercado, eu comprei” e mostrou um papel dizendo que tinha comprado de alguém, e ele sabia que não era de ninguém, porque 2008 ele pediu pra comprar e eu disse que não vendia, até porque era beira de cachoeira onde o povo ia tomar banho, essas coisas assim, então não podia cercar né, era área de APP, mas as pessoas que vêm de fora não estão se importando com isso. (...) mas tem gente que não, que chega cerca a cachoeira, é minha ninguém pode entrar, bota arame com eletricidade e ninguém pode entrar. Isso é uma diferença das pessoas de fora que não são daqui, pra gente a cachoeira não é minha, a cachoeira é nossa (...)” (Entrevista concedida por Marilda à Gabriel Corrêa em agosto de 2017).
A imagem 2 representa a forma como os muros são levantados para delimitar aquilo que é privado e aquilo que não é. A noção de bem comum se esvazia com essas práticas e a comunidade quilombola enfrenta a fragmentação territorial. Já a imagem 3 apresenta a construção de portões em áreas que dão acesso aos rios.
Segundo Marilda, nos últimos anos tem-se observado cada vez mais o aumento do desmatamento na região, acompanhado de ocupação, invasão e cercamento de vários acessos a espaços afetivos e de lazer, como é o caso dos poços e cachoeiras do rio Bracuí, áreas que, inclusive, são consideradas APP (Área de Proteção Permanente) e que, pela legislação, deveriam ser preservadas.
No que se refere ao rio Bracuí, sua existência é de suma importância para a comunidade e os conflitos em seu entorno são emblemáticos na luta pela permanência na terra. Relatos dos quilombolas explicitam que a continuidade da comunidade se dá até hoje pela disponibilidade de água com qualidade que captam do rio. Além disso, configura-se como área de lazer e representa a forma como as práticas da comunidade não afetaram negativamente o rio.
Na atualidade, no contexto regional de crise hídrica, a bacia do rio Bracuí tem sido estudada para a implementação de uma barragem, cuja função seria auxiliar no abastecimento de municípios da região sul do Estado, como Angra dos Reis. Organizada em torno da identidade quilombola e em processo de titulação, a comunidade enfrenta o projeto e se opõe a construção da barragem. É importante refletirmos sobre até que ponto a prefeitura respeita a autonomia da comunidade na gestão do território, e no mesmo caminho, até que ponto o fato de ser uma comunidade negra, e não um condomínio de luxo, afeta nas intervenções realizadas por ela.
Hoje, o espaço em que está a comunidade remanescente de quilombo de Santa Rita do Bracuí é somente parte do perímetro que compreendia a propriedade do fazendeiro José de Souza Breves. Localizada a pouco mais de 15 quilômetros da entrada principal de Angra dos Reis pela BR 101, a comunidade vem criando estratégias de r-existência através de práticas culturais, agrícolas, de ensino, turismo e fortalecimento da ancestralidade pela memória oral, visando a reprodução da comunidade e titulação de suas terras. No entanto, como vimos anteriormente, os conflitos ainda estão na ordem do dia da comunidade, consequência das perdas territoriais dos últimos anos do século XX.
A população da comunidade é majoritariamente negra, mas o fato de serem permitidos casamentos inter étnicos possibilita a presença de brancos. Os marcos da formação da identidade coletiva da comunidade ainda fazem parte do cotidiano das pessoas, expressos nos corpos, nas subjetividades e nas ações concretas dos quilombolas de Santa Rita do Bracuí. Dessa forma, os principais marcos são: o processo de formação a partir do tráfico atlântico; o processo comum de escravização; a territorialização e o contexto de luta pela terra; a tradição histórica oral produzida no interior do grupo, como método de transmissão de memória; a defesa do patrimônio imemorial, a partir principalmente das lutas por expressões culturais e o jongo; e a construção do território sob uma perspectiva simbólica e social, constituída por práticas comunitárias e expressas pelo grupo.
[1] Com o diálogo exercido em Janeiro de 2018, a fala de João foi retirada de (CORRÊA, 2018)