A modernidade no Projeto Baixio de Irecê e a negação do modo de vida dos camponeses do Baixio do São Francisco
O conflito acontece pela sobreposição entre os territórios tradicionais[1] das comunidades do Baixio do São Francisco nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia a implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Esse projeto prevê a disponibilização de lotes de irrigação em praticamente todas as áreas de fundo de pasto utilizadas por essas comunidades. Esse projeto é uma parcela dos grandes investimentos na expansão das fronteiras agrícolas e criação de infraestruturas para impulsionar o crescimento econômico e social do Brasil.
O protagonismo da tecnologia ao mesmo tempo em que demonstra como o trator consubstanciou-se no próprio Estado, ambos apresentados à multidão como “modernos” e “modernizantes”
Fonte: (REIS, 2012).
Esse processo de modernização fez com que a produção agrícola da região polo (Irecê) crescesse consideravelmente e a tornasse conhecida internacionalmente como produtora de feijão. Chegou a ser chamada “capital do feijão”, por isso o Projeto de Irrigação recebeu o nome de Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, mesmo que o referido projeto abrange parte de outro território, municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia.
Com seu discurso de “progresso” o Estado não considera o modo de vida dessas comunidades, de tantos posseiros, agricultores, ribeirinhos, camponeses, dentre outras categorias espalhadas pelas diversas comunidades tradicionais que no percurso da história foram se constituindo e formando identidades próprias. Sujeitos considerados antagônicos a esse modelo por isso, expulsos ou exterminados em nome desse “desenvolvimento”.
Conforme pesquisa de (Cruz, 2016) as empresas Bahema, Odebrecht, Econômico Agropastoril (Banco Econômico), Copener, dentre outros interessados, como empresários e fazendeiros, contrataram um grileiro para expulsar as famílias que viviam nas comunidades tradicionais dos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia. Tal grileiro chefiou um grupo de homens que andava armado, ameaçando as famílias de morte, fazendo pressão psicológica e expulsando-as de suas casas. O grupo de jagunços utilizava como transporte um caminhão, com armas e sacos de balas. A pressão era tamanha que muitas famílias saíam às pressas de suas casas para não serem queimadas vivas, assim, abandonavam casas, roças e pequenas propriedades. Conforme denúncia: Os atuais moradores não falam, impedidos pelo medo. Entretanto, aqueles que abandonaram suas propriedades, “por força das armas” afirmam, solicitando a omissão de seus nomes, que existem pistoleiros grilando terras, beneficiando a grupos que desconhecem, mas que suspeitam de quem mais se beneficiará da área, a Codeverde (A TARDE, 26/11/1994).
Este processo de grilagem[2] se intensificou após a divulgação do primeiro estudo pela CVSF – Comissão do Vale do São Francisco, realizado na década de 1960. Alguns residentes nas margens do Rio Verde foram expulsos, casas destruídas ou semidestruídas, instalações rurais e pequenos animais domésticos abandonados.
Os grileiros, além de comandarem o processo da grilagem, gerenciaram o registro das terras nos cartórios de Xique-Xique e Sento Sé. As áreas de terras eram registradas em seus nomes e em nome de outras pessoas que foram usadas para garantir o registro de toda extensão de terra grilada, que posteriormente foram vendidas para empresas.
As instâncias estaduais utilizam grileiros para legitimar as propriedades em nomes de particulares e garantir a segurança jurídica, institucionalizando a violência e a injustiça. Constata-se que os grileiros não agiam sozinhos, existia apoio das empresas, do Banco Econômico e de políticos do Estado da Bahia, para conquistar a grande extensão territorial, o poder era instituído pela força das armas. As poucas tentativas de punição aos crimes eram também ameaçadas. Como assegura denúncia registrada no Registro de Conflitos da CPT em novembro de 1983: A polícia apreende metralhadoras Urus e rifles Winchester no carro de propriedade do Banco Econômico, com 4.000 balas. O gerente foi preso e transferido para Salvador e logo libertado por intervenção de deputado Estadual do PDS e um senador, o delegado de Irecê foi acusado de turbar a propriedade do Econômico e ameaçado de perder o cargo. (CPT – CONFLITOS NO CAMPO, 1983, p.11).
Antes de recorrer às instâncias oficiais o povo resistiu em suas casas, impediu a derrubada da caatinga e das suas roças, primeiro individualmente, mas logo que perceberam que as ameaças eram comuns começaram a tomar pequenas inciativas de forma mais organizada.
A concretização desse projeto seria o fim dessas comunidades. Segundo os moradores, nenhuma eventual medida de compensação poderá reverter essas perdas nos seus territórios e consequentemente nas suas identidades. Mesmo diante de tantas ameaças e das constantes crises do capital esses camponeses têm mostrado sua grande capacidade de se reerguer e se afirmar numa perspectiva antagônica ao modelo hegemônico depredador vigente.
[1] Espaço de vida onde uma enorme diversidade de culturas camponesas constrói sua existência. O território camponês é uma unidade de produção e local de residência da família, que muitas vezes pode ser constituída de mais de uma família. Esse território é predominantemente agropecuário, e contribui com a maior parte da produção de alimentos saudáveis, consumidos principalmente pelas populações urbanas. (FERNANDES, 2012, p. 744).
[2] Ato de ocupar ilegalmente terras públicas. O termo grilagem vem da descrição de uma prática antiga de envelhecer documentos forjados para conseguir a posse de determinada área de terra. Os papéis falsificados eram colocados em uma caixa com “grilos”. Com o passar do tempo, a ação dos insetos dava aos documentos uma aparência envelhecida.