A autonomia das comunidades de Fundos de Pasto do Baixio do São Francisco como forma de enfrentamento à expansão das fronteiras do agronegócio
Embora o conflito continue, as comunidades permanecem na área com seu modo de vida tradicional. Juridicamente essas comunidades têm procurado várias instâncias e recorrido muitos de seus direitos, se afirmando como sujeitos de direitos e impedindo essas ações do Estado.
No entanto, o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, continua gerando expectativas de desenvolvimento para região, entre técnicos da CODEVASF, irrigantes, empresários. Enquanto para as famílias das comunidades do seu entorno, o referido projeto representa desilusão, uma vez que ameaça seus territórios e contrapõe o modo de vida das comunidades onde desenvolvem a criação de seus animais e o extrativismo.
À medida que as comunidades foram resistindo, a área inicial do projeto foi reduzindo. A pretensão inicial era de irrigar mais 380 mil hectares, inclusive toda essa extensão foi grilada entre as décadas de 1970 a 1990. Nessa época o Governo Federal através do Proálcool tinha a pretensão de plantar três (03) milhões de hectares de cana em todo País. Posteriormente, com as sucessivas crises o Estado se viu obrigado a reduzir a extensão do projeto para 250 mil hectares. Ultimamente falam em 59.630 hectares, contemplando área de proteção ambiental. As comunidades atribuem essa redução, primeiramente à resistência dos próprios camponeses e os recorrentes conflitos provocando um descrédito por parte de algumas empresas; além da diminuição da vazão do rio São Francisco que provoca incertezas para os investimentos. Mesmo assim, o desmatamento já atingiu 16.500 hectares de caatinga para implantação das etapas 01 e 02 do projeto e tem a pretensão de desmatar mais de 40 mil hectares para as outras etapas.
Thomas Bauer
No dia 23 de março de 2018 essa polêmica obra foi inaugurada pelo atual Presidente da República desconsiderando a recomendação e as tentativas de mediação do MPF para resolver o conflito. Diante disso, as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto dos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia emitiram uma nota denunciando a forma autoritária e brutal que o Estado tem tratado essa população. Mais uma vez não ouviram o clamor das comunidades, negaram e negligenciaram seus direitos socioambientais. As comunidades conclamam, na nota, às autoridades do Estado da Bahia, da Federação e a Justiça Brasileira, para que respeitem o modo de vida de mais 700 famílias e que garanta os direitos perante as leis brasileiras e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.
Além da nota, moradores dessas comunidades impactadas fizeram uma manifestação na estrada que dá acesso ao canal, com faixas e panfletos. Os manifestantes apresentaram a insatisfação com a negligência dos direitos socioambientais e costumeiros das comunidades, reivindicando a devolução do território através do Procedimento Discriminatório Rural. Outro grupo com cerca de 60 pessoas, foi impedido de se unir ao restante dos manifestantes pelo Exército Brasileiro no Km 08 do canal principal do projeto e ainda foi proibido de retornar as suas casas pelo mesmo caminho.
Os camponeses afirmam que o empreendimento é uma farsa e que não serão escravos do projeto de irrigação. “Não vamos nos calar diante da imposição deste nefasto Projeto de Irrigação, nem deixar de lutar pelos direitos aos territórios secularmente ocupados pelos nossos antepassados. Nós queremos as nossas terras para criar, se o canal funcionar vai prejudicar todos nós, onde a gente cria e sobrevive” (Marcos Bonfim).
“Eles querem nos dar alguns poucos empregos que dizem que é assalariado. Mas não queremos trabalhar assalariados. Queremos trabalhar como camponeses e criadores. Plantar, colher, cuidar da nossa criação, isso é que é importante pra gente e isso é o que a gente sabe fazer, não queremos perder nosso modo de vida, não queremos trabalhar com veneno ou com trabalhos que só vão ter em época de colheita”, desabafou Maurício Rodrigues, também da comunidade de São João.
Para os povos das comunidades tradicionais a terra e o território sempre foram e continuam sendo espaços sagrados de relacionamento afetivo por gerar vidas. Hoje essas comunidades somam a outras centenas de áreas de Fundos e Fechos de Pasto, com cerca de 20 mil famílias, totalizando uma média de 100 mil pessoas, identificadas pelo Governo Estadual. Essas comunidades tradicionais destacam também na questão ecológica, diante de uma Caatinga cada vez mais devastada pela expansão dos empreendimentos econômicos.
Referências bibliográficas
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JORNAL CULTURA E REALIDADE. Projeto Baixio de Irecê. Discriminação, violência e injustiças: Irecê: 1994.
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DOURADO, Claudio. A DISCRIMINAÇÃO DAS TERRAS DEVOLUTAS: Os critérios do Estado da Bahia para a destinação. Universidade Federal de Goiás - Goiânia-Go, 2017.
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