O neocolonialismo de Estado versus as comunidades de Fundo de Pasto do Baixio do São Francisco
Esta região do Rio São Francisco[1] passa por grandes e aceleradas transformações a partir da modernização no Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, nos anos 1937-1945. Em 1940 foi criada a Companhia Hidrelétrica do São Francisco – CHESF.
O projeto Baixio de Irecê teve sua idealização desde a década de 1961, depois do estudo realizado pela CHESF, que pretendia alojar nesta grande área as famílias enxotadas pela Barragem de Sobradinho. Chegaram a trazer algumas famílias expulsas com a construção da barragem. Formando algumas povoações, como é o caso de Nova Vereda, citada acima.
Como compensação criou-se a Comissão do Vale do São Francisco CODEVASF, iniciando o projeto em 1961 e concluindo nos anos de 1992/1993. O início da construção do principal canal aconteceu em 1999 e retomada em 2003, pelo governo Lula, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento-PAC do Governo Federal. Destinando uma área de 59.630 hectares para o agronegócio[2].
Em meados de 2010 foi concluída a construção de 42 Km deste canal, as estações de bombeamento, o sistema de energia elétrica, dentre outros já estava implantada. Todavia, resta construir mais 42 km do canal principal, o qual tem uma capacidade máxima de bombeamento 67m³/s de água. O descrédito dos investidores[3] e a queda nos investimentos nas Parcerias Público-Privadas tornaram inviável a continuação das obras.
As instâncias públicas, como o legislativo e o judiciário são instrumentos de legitimação dos investimentos do capital mesmo que seja a ferro e fogo. Segundo Marés, dissolvem as antigas relações econômicas da propriedade para tornar seus investimentos seguros, mesmo em cima das injustiças (2009). Dessa forma as fronteiras tradicionais estão sempre ameaçadas por essa especulação (HARVEY, 1982).
Tomada de água do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.
Comunidade Nova Boa Vista (Xique-Xique).
Canal principal do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.
Fonte: CODEVASF, 2016
O Estado ainda persiste com suas ações para legitimar a ocupação dos territórios pelo agronegócio. Em 2013 a CODEVASF seleciona 216 unidades parcelares, sendo 47 para pequenos produtores e 169 para médios produtores, somando um total de 4.207,86 hectares. Mas as famílias das comunidades atingidas/impactadas não são incluídas no projeto de irrigação segundo os critérios da CODEVASF.
Na ocasião, apresenta-se uma área de 666,92ha, denominada como área de inclusão social, para incluir as famílias atingidas. A Prefeitura Municipal de Xique-Xique realizou o processo de cadastramento dessas famílias, porém a área mapeada conformava como área remanescente dos territórios grilados nas décadas de 1970/90 e era insuficiente para atender todas as famílias das comunidades atingidas. As Famílias rejeitaram, por unanimidade, o mapa topográfico realizado pela CODEVASF já que a referida área sobrepunha o território identificado pelos representantes das comunidades junto com o agrimensor da CDA.
A CODEVASF autorizou a supressão da vegetação na tentativa de dar início à segunda etapa do projeto, com processo de investigação do Ministério Público Federal – MPF em andamento, abandonando a primeira etapa do projeto por falta de financiamento aos pequenos irrigantes.
Destruição do território das comunidades impactando o modo de vida daqueles moradores.
Foto: Thomas Bauer
Em julho de 2016, representantes das comunidades impactadas encaminham denúncia do desmatamento e solicitaram do MPF que evitasse a continuidade da supressão da caatinga. Em 13 de dezembro de 2016 o MPF recomenda à CODEVASF a imediata interrupção do desmatamento e iniciar diálogo de negociações com as comunidades impactadas. Mesmo assim, a CODEVASF construiu resolução interna[4] descumprindo a recomendação do MPF.
As comunidades entraram com outra denúncia, situação ainda não resolvida até os dias atuais e as comunidades aguardam o julgamento da representação junto ao MPF e a realização da Ação Discriminatória Rural na perspectiva de que haja a investigação do processo de usurpação das terras por parte das empresas e da CODEVASF.
O direito costumeiro dos Fundos de Pasto e a Legislação Oficial na Região do Baixio do São Francisco
Os direitos dessas comunidades só foram possíveis após a Constituição Federal de 1988. A carta Magna reconhece as diversas lutas e as distintas formas de resistência, mas na prática os costumes tradicionais e ocupação dos seus territórios, praticada há centenas de anos, só foram reconhecidos oficialmente como Comunidades Tradicionais em 2007, através do Decreto 6.040/2007, que determina a composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais, criada para articular políticas públicas para o desenvolvimento e à reprodução dos diferentes modos de vida.
Atualmente, os Fundos de Pasto são protegidos na Constituição Baiana de 1989, no Artigo 178; pela Constituição Federal de 1988, Art. 216; e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT.
A Convenção n º 169 foi assinada pelo Brasil em 2002, com força de norma constitucional, por tratar de matéria de direitos humanos, reconhece diversos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais e, se somam os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, o Decreto 6040 de 2007, o artigo 178 da Constituição do Estado da Bahia.
Os Povos e Comunidades Tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (Artigo 3º § I. DECRETO 6040/2007. p. 01). Cujos direitos devem ser garantidos e respeitados. Sequer foram ouvidos, negando o direito da consulta prévia às comunidades afetadas na elaboração e execução do projeto.
A lei que regulamenta e institui os Fundos e Fechos de Pastos como maneira legítima de posse de terra (Constituição Estadual da Bahia, 1989) foi promulgada em 2013, através da Lei nº 20.417/2013, tornando prioridade a regularização fundiária das terras públicas estaduais, rurais e devolutas, ocupadas pelas comunidades envolvidas em conflitos coletivos pela posse da terra (Art. 04 § 3º); autoriza o Estado a proceder à regularização fundiária das comunidades de fundos e de fechos de pastos, através de contrato de concessão de direito real de uso, com duração inicial de noventa anos, podendo ser prorrogado. Mesmo que a Lei nº 12.910, de 11 de outubro de 2013, veda a possibilidade de destinação da terra para outra finalidade que não seja a de reprodução física, social e cultural das comunidades de fundo e fecho de pasto.
A Coordenação de Desenvolvimento Agrário – CDA, após o procedimento Discriminatório Rural, comprova a grilagem e a sobreposição da área do projeto de irrigação sobre o território das comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto. São terras públicas que foram roubadas e regularizadas ilegalmente em nome de terceiros e empresas para favorecer o projeto de Irrigação.
Comprovado o uso e cultivo da terra sob forma comunitária, o estado, se considerar conveniente, poderá conceder o direito real da concessão de uso, gravado de cláusula de inalienabilidade à associação legitimamente constituída e integrada por todos os seus reais ocupantes, especialmente nas áreas denominadas de fundos de pastos ou fechos e nas ilhas de propriedade do estado, vedada a esta transferência de domínio. (CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DA BAHIA. Artigo 178. 1989. p. 53). As comunidades aguardam a “Regularização Oficial” de seus territórios como garantia de suas identidades reveladas nas formas de expressão e no respeito aos modos de criar, fazer e viver (CF – 1988 (Art. 216, Inciso I e II), para que seus direitos costumeiros sejam respeitados - conjunto de normas de conduta social, criadas espontaneamente pelo povo [...] (Nader, p. 156)).
Portanto, o Contrato de Direito Real da Concessão de Uso não assegura a autonomia das comunidades, nem a segurança jurídica já que o Estado preso ao paradigma legalista, e privatista desconsidera a história e o processo mais efetivo de participação dos sujeitos coletivos de direitos, em função de suas especificidades e das desigualdades históricas. Favorece o referido projeto como única saída para alcançar o desenvolvimento econômico, como conclui a antropóloga do MPF que confirma a identidade territorial e cultural das dezoito comunidades impactadas pelo referido projeto, e que o Estado em suas diversas instâncias vem negando a existência e a resistência das famílias que lutam para defender e garantir seus direitos territoriais, culturais, socioambientais.
Todavia, desde o período colonial essas comunidades lutam e resistem para garantir seus direitos expressos em leis, convenções, decretos dentre outros instrumentos jurídicos, mas a efetivação de muitas delas continua distante da realidade de várias comunidades tradicionais. Existe um contingente de comunidades que ainda desconhecem determinadas leis, bem como, seus direitos instituídos. Contudo, o Estado com seu caráter “modernista” é incapaz de atender as formas de expressão dos camponeses em sua diversidade multicultural e pluriétnica.
Na década de 1990 as organizações não governamentais posicionaram contra o projeto, inclusive realizando denúncias. Entre as instituições da época estavam o GARRA - Grupo de Apoio e de Resistência Rural e Ambiental, FUNDIFRAN - Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco, CAA – Centro de Assessoria do Assuruá, Movimento Sindical, Comissão Pastoral da Terra dentre outras entidades do Médio São Francisco. Atualmente essas comunidades impactadas contam com acompanhamento direto da Comissão Pastoral da Terra.
[1] O Rio São Francisco é o maior rio totalmente brasileiro, percorre por quase 3000 km oito estados, por ter sido o meio de penetração no território e o principal meio de comunicação entre o Nordeste e o Sudeste, é chamado “rio da integração nacional”. Em suas margens desenvolveu-se até meados do século XX a “economia do catado”, baseada na comercialização feita pelas embarcações nos inúmeros portos dos produtos regionais, maioria feita por pequenos produtores agropecuários e pescadores. Outro apelido do São Francisco foi “rio dos currais”, devido as fazendas de gado postadas às suas margens pelos colonizadores a partir do século XVII, em que além de matrizes animais eram colocadas uma família de negros escravos para desenvolver a atividade pecuária. A marca desta história está na cor negra da pele e nos costumes do povo ribeirinho, que sabe combinar magistralmente beira-rio e caatinga.
[2] Continuação de uma lógica produtiva baseada no desenvolvimento tecnológico e no incentivo às relações de mercado que se espalhava pelo Brasil a partir de meados do século XX. [...] A participação governamental no processo de modernização das relações agrárias do Platô Norte Diamantino remonta a 1943. Neste ano a Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia disponibilizou tratores para que pudessem ser alugados pelos produtores. Junto a essa iniciativa, surgiram também as primeiras concessões de crédito para aquisição de implementos (REIS 2012, p.183).
[3] Multinacionais como a estatal Líbia Lafico – Li-byan Arab Foreign Investimentos, Banco Mundial (BIRD). Consórcio PEM-PAMPULHA; e empresas nacionais como o Banco Santander, FNP, ODEBRECHT, Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Verde – CODEVERDE.
[4] Representante da CODEVASF afirma em reunião pública que a diretoria executiva da referida Estatal havia construído uma resolução interna descumprindo a recomendação do Ministério Público Federal de que referia a suspensão da supressão vegetal até que se resolvesse o conflito (31 de agosto de 2017).