É importante destacar incialmente que não é possível compreender o processo de resistência em Casa Nova sem compreender a rede de resistência que se formou na Zona da Mata Mineira contra um conjunto de empreendimentos que ameaçava as comunidades ribeirinhas na época.
Em um documento com vistas a obtenção do Prêmio Direitos Humano da Universidade de São Paulo (USP), organizada pelo então Deputado Federal em 2004, César Medeiros, Padre Claret, aspirante ao título, retrata em suma como se deu o processo de formação de uma rede de resistência contra barragens na Zona da Mata Mineira e no Alto Rio Doce. Inicialmente não existia ainda o MAB na região. As primeiras movimentações se deram com o encontro entre o Padre Claret e o professor Franklin Daniel Rothman, da Universidade Federal de Viçosa, por volta de 1995. O professor Franklin, recém-chegado de uma pesquisa no sul do Brasil com atingidos por barragens deu início, juntamente com outros militantes, ao Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab). O Nacab, por sua vez, contava com o apoio de um membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Padre Gilson, da paróquia de São Sebastião, Ponte Nova, Minas Gerais. Padre Claret destaca dois grandes embates que foram responsáveis para a consolidação da rede de resistência: o projeto da barragem de Pilar, consórcio entre a FIAT e ALCAN e a barragem de Emboque, de responsabilidade da Companhia Força e Luz Cataguases Leopoldina.
O projeto Pilar, que teria sua implantação no Rio Piranga atingiria mais de 300 famílias, sobretudo agricultores familiares dos municípios de Guaraciaba e Ponte Nova, Minas Gerais. Contudo, a luta e resistência por mais de cinco anos das comunidades impediram a concretização deste projeto em 1999. Quanto ao processo de resistência contra a barragem de Emboque, num primeiro momento, a organização não foi tão profícua com potencial de barrar as obras, não obstante, muitas das condicionantes que não foram cumpridas na época, mas que foram cumpridas posteriormente se deu pela organização e persistência do povo.
Nesse sentido, nos primeiros anos de resistência contra projetos hidrelétricos na Zona da Mata Mineira foi possível verificar diversas estratégias de ação coletiva. Como os movimentos se organizam e quais as possibilidades estruturais de atuação são elementos importantes para entender o histórico de resistência. No Brasil, existe um histórico quanto às estratégias de resistências utilizadas e de certo modo elas se convergem entre os movimentos sociais, seja em lutas na cidade ou no campo. Parecem existir metodologias e discursos comuns adaptadas aos contextos locais, mas quase sempre enviesadas por padrões de esquerda que orientam as ações políticas e culturais dos movimentos. Não é raro, portanto, que os movimentos sociais se pautem em predisposições teóricas e metodológicas comuns de autores como Karl Max, Paulo Freire, Antonio Gramsci, entre tantos outros, evidenciando dessa forma uma orientação política dos participantes. Existe então nesse sentido um grande embate entre a Igreja Católica tradicional e os movimentos sociais, já que a primeira é contrária aos pressupostos socialistas e revolucionários - que diversos destes autores compactuam -, sobretudo se utilizar de algum tipo de enfretamento violento ou que possa estimular a violência em qualquer outro aspecto.
O próprio Dom Luciano em uma entrevista concedida a pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Minas Gerais, retratou alguns aspectos relativos às prioridades no processo de resistência, ressaltando, concomitantemente a necessidade de se criar espaços de diálogos entre a comunidade e representantes do empreendedor, incluindo, além disso, autoridades do Estado.
Três soluções apresentaram-se: a primeira é organizar o povo para que eles tenham condições de expressarem suas expectativas e essas organizações podem ser induzidas por um grupo, induzida por outro, até que houvesse uma consolidação, um fortalecimento das iniciativas propriamente populares passados alguns anos. [...] A segunda saída é realmente o diálogo com as entidades que promovem a construção de barragens. Esse diálogo nem sempre foi fácil, porque havia assessores que visitavam as famílias oferecendo indenizações, uma ou outra aceitava, outras não aceitavam? resultado: foi se criando uma espécie de confronto de fazer acontecer a barragem e a defesa dos direitos dos atingidos por barragens. Então, essa solução, embora viável, ela foi de difícil condução. E a terceira era o recurso à autoridade governamental nas suas diversas instâncias para arbitrar essa organização dos atingidos [Entrevista com Dom Luciano] (SILVEIRA, OLIVEIRA e FERREIRA, 2006, p.22-23).
Pensar o diálogo com o empreendedor nas organizações de base é algo inaceitável, tratado até mesmo como traição. Movimentos não se comunicam com empreendedor e isso é uma palavra de ordem. Assim, o movimento de base se orientará por vezes de forma contrária às sugestões do alto escalão da Igreja Católica, mesmo que esta simpatize com o movimento progressista, adepto ou não da Teologia da Libertação[1]. Isto é, estão, em verdade, convergentes com os objetos da ação que é a defesa dos direitos humanos, se divergem, porém, na forma como alcançá-los.
O processo de construção de grandes empreendimentos, desde a fase de planejamento até o cumprimento das condicionantes – pós funcionamento do projeto – junto às comunidades requer um conhecimento técnico muito grande, sobretudo no que concerne aos processos negociáveis ao longo de todo o conflito. O problema é que comunidades rurais, as quais seus moradores possuem baixos níveis de escolaridade, incluindo muitos que mal sabem assinar o próprio nome, tem sofrido sobremaneira por não possuir o métier científico necessário para lidar com as situações ao longo do conflito. Nesse contexto, a Igreja em aliança com outras organizações, como grupos universitários e ONGs, tem feito um papel importante neste campo de atuação. Configura-se então em um dos pontos de ação que tem dado alguns resultados satisfatórios, mesmo diante de uma grande assimetria de recursos tendo em vista o capital científico do empreendedor.
Documentos técnicos, tais como os Estudos de Impacto Ambiental (EIAs) e os Relatório de Impacto Ambiental (RIMAs), instrumentos de difícil decodificação, são necessários para obtenção da Licença Prévia dos projetos e são responsáveis por delimitar ações futuras por parte do empreendedor. Ali estão listados os principais impactos sociais e ambientais que incidirão sobre as comunidades, projetando, com efeito, medidas compensatórias para minimizar ou reverter em possibilidades de melhorias para as comunidades e para a região indiretamente impactada. Dessa forma, analisar o EIA/RIMA e identificar os principais erros, faz parte da estratégia de Ação Coletiva. Entretanto, este é apenas um exemplo dos diversos documentos que incorrem durante o processo, passíveis de entendimento por parte da comunidade.
Outra instância de projeção no processo de resistência se referem às audiências públicas, embora se configure como um espaço apenas consultivo, não deliberativo. Ainda sim, a presença e fala de membros da Igreja se tornam importantes, assim como na preparação para levar às comunidades para as audiências. Nos fragmentos abaixo, retirado de jornais da época, podem ser vistos alguns exemplos da participação de movimentos eclesiais nesses espaços.
[...] cada uma das entidades que defendem os interesses dos atingidos também tiveram 5 minutos para expressarem sua opinião. O primeiro a se apresentar foi o padre Claret, representando as CEBs da Arquidiocese de Mariana. Segundo ele, “este é um jogo de forças. Força do poder (empreendedor) e força do povo que vai começando a entender a importância da organização” (FOLHA DE PONTE NOVA[2], 2001, audiência pública em Miguel Rodrigues, Minas Gerais).
[...] o padre Claret discorda e frisa decisão do MAB: exigir dos órgãos ambientais que só autorizem o enchimento do lago com o fim de “muitas pendências” [...] Há ênfase para problemas na obra da Nova Soberbo (cuja vila original será inundada) e várias reivindicações dos atingidos, com dramas que incluem um desaparecimento e uma morte. Neste caso o arcebispo [Dom Luciano] apela para as “questões humanitárias e de direito” (FOLHA DE PONTE NOVA, 2003, audiência pública em Belo Horizonte, Minas Gerais).
Outro ponto de Ação Coletiva que compõe o repertório constitui no enfrentamento direto, não num sentido de violência, mas em suas mais variadas formas de embate com empreendedor, incluindo formas de enfretamento que são simbólicas, tal como a utilização do teatro, da dança e da música de conteúdo crítico. Ou, tida como mais enérgicas aquelas formas de enfrentamento em que o número de pessoas participando faz toda diferença, a citar os acampamentos, as ocupações e as passeatas, por exemplo. Mais uma vez a presença de membros da Igreja Católica em trabalho conjunto com outros movimentos sociais tem feito diferença. Primeiro que, a experiência das organizações eclesiais de base é de suma importância para a mobilização do povo, incluindo ações e discursos baseados na bíblia, típico dos simpatizantes da Teologia da Libertação. Segundo, pois, a presença de líderes religiosos, em consonância com líderes locais é um fator essencial para a aglomeração de um grande contingente de pessoas necessário para a prática coletiva. Eis, a seguir, alguns exemplos destes tipos de mobilização levando em consideração que seria impossível listar todos.
O processo da marcha foi se fortalecendo a partir da necessidade de denunciar a situação que vivemos e o tratamento que recebemos das empresas construtoras de barragens. As mobilizações organizadas nas regiões em função do Dia Internacional de Luta contra as barragens – 14 de março, não foram suficientes para as empresas atenderem nossas reivindicações [...] (JORNAL MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS, 2004, p. 2).
Manifestação reúne produtores na Alcan. O protesto é contra a construção de uma Usina Hidrelétrica de Fumaça na região de Diogo Vasconcelos e Fumaça. A empresa está sendo acusada de obrigar produtores rurais a negociarem as terras [...] (JORNAL PONTO FINAL, 2001, p. 1).
Mais de duzentas famílias da comunidade do distrito de Miguel Rodrigues invadiram na segunda feira 29, o canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Fumaça [...] A Invasão está sendo comandada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens com o apoio da Comissão Pastoral da Terra [...] (JORNAL PONTO FINAL, 2001, p.3).
Percebe-se que a escolha pela forma de enfrentamento obedece a fatores externos, mas ainda sim os grupos possuem uma maior autonomia sobre esse tipo de Ação Coletiva do que na forma anterior. Desde que tenha recursos disponíveis (incluindo, por vezes, recursos financeiros) e planejamento prévio estes tipos de ações são viáveis. São bem vindas, ademais, em datas especiais como datas religiosas ou em reuniões de órgãos ambientais, incluindo lugares públicos e movimentados, por exemplo, pois, para os movimentos sociais o ideal é atingir o máximo de visibilidade da sociedade no sentido de denunciar as injustiças que estão sofrendo. Nas figuras abaixo podem ser vistos imagens da Romaria da Água e da Terra que acontecidas em 2013 na cidade de Miradouro, Minas Gerais. A Romaria, organizada pela Diocese de Leopoldina e pela Comissão Pastoral da Terra é mais um exemplo de manifestação religiosa e popular que arrasta multidões de pessoas, sobretudo agricultores familiares devotos.