As Redes Comunitárias de Água
No final dos anos 1990, um grupo de agricultores e agricultoras, assentados pelo INCRA[1] em 1975 e organizados por meio da Associação de Produtores da Ilha Vecchi e Adjacências (APROVECCHI), começou a desenvolver seus próprios meios de reconstrução das condições de re-produção da vida. O descaso do poder público com a região, caracterizado pela falta de estradas, saneamento básico, e acesso a saúde e educação, aliados à falta de uma estrutura de captação, filtragem e distribuição de água, são aspectos que impulsionaram o processo de apropriação camponesa da água no Vale do Guapiaçu (D’ANDREA, 2018).
A rede comunitária de água se desenvolve a partir do projeto “Água Boa – Sistema Ilha Vecchi”, criado pelos agricultores e agricultoras assentados em parceria com a Prefeitura Municipal de Cachoeiras de Macacu (PMCM) para a construção de um sistema de captação, filtragem e distribuição das águas.
Segundo “D”[2] [3]
[...] nós entramos com o trabalho, a contrapartida do serviço, mas recebendo também, não teve ninguém trabalhando de graça [...] (“D” citado por D’ANDREA em reunião com os pesquisadores e pesquisadora do Lemto - UFF, 2018)
O projeto, apesar dos obstáculos envolvidos, como indícios de superfaturamento por parte da Prefeitura e má qualidade do material fornecido pela mesma, desenvolveu-se por meio da sabedoria e do trabalho coletivo dos grupos sociais que ali viviam, em suas terras arduamente conquistadas. O resultado foi a primeira Rede Comunitária de Água do vale do rio Guapiaçu, localizada na Ilha Vechi.
Foto 2: Captação de água da rede comunitária atualmente - 2017 (Foto: Julia Ladeira)
Uma vez que em 1999 as 142 famílias assentadas pelo Banco da Terra na comunidade de Serra Queimada ainda não se encontravam lá (foram assentadas entre 2001 e 2002), o então proprietário da fazenda teve que ser envolvido em negociações. A tubulação de captação de água passaria por dentro de sua propriedade, para captar água do Rio Caboclo, afluente do Rio Guapiaçu. O fazendeiro, José Duarte Tostes, permitiu a passagem, com a condição de que fosse incluído no projeto a construção de uma rede de água específica para o abastecimento de sua pocilga (D’ANDREA, 2018).
Em 1999, eu e “M” fomos lá pra fazenda, em frente ao colégio a gente topou com o fazendeiro José Tostes. ‘Seu José, tamo precisando de água pra Ilha Vecchi, o que o senhor pode fazer pra água passar?’. ‘Faça uma rede beirando a minha’ [...] Resultado: faz uma rede beirando a fazenda dele, com prioridade de deixar uma saída no Chiqueirão, pros porcos e leitões se refrigerar com o ar, com aquele ventilador ligado (“D”, em reunião da APROVECCHI no dia 12/05/2017, in D’ANDREA, 2018).
Explicitemos aqui a forma como as relações de poder no campo são marcadas pela imposição. O latifundiário exerce seu poder para inserir uma rede privada em um projeto financiado com dinheiro público. Depoimentos de moradores da região à época apontam que os dejetos dos animais do curral do latifundiário eram diretamente jogados no Rio Caboclo. Dessa forma, contribui para a poluição das águas e liberando fortes odores de fezes e urina, evidenciando as condições precárias de saneamento e a perda da qualidade da água, distribuída pelo sistema de captação.
Ao longo de 2001, os recém assentados pelo Banco da Terra na comunidade de Serra Queimada se viram em meio a um quadro de relação desigual de forças estabelecida com o latifundiário, bem como com a Prefeitura. Assinalamos, portanto, as diversas dificuldades enfrentadas pelas famílias desde o momento em que foram assentados, que perpassavam questões de terra e que “desde o início a água foi um objeto de disputa entre as fazendas da região e os pequenos agricultores – desde os assentados pelo INCRA até os assentados pela Reforma Agrária de Mercado (RAM)” (D’ANDREA, 2018). A agricultora local “R”[4] , deixou claro durante sua fala na Audiência Pública realizada em 06/12/2016, a situação pela qual os agricultores passaram quando chegaram em Serra Queimada, tornando clara a falta de comprometimento com a verdade no fechamento dos contratos, tendo em vista a situação de vulnerabilidade dos assentados.
“[...] a compra da terra, quando a terra foi comprada, os agricultores não puderam, não viram a terra, não puderam entrar dentro da terra, não puderam conhecer aquilo que estava comprando, se era uma área boa, se era uma área ruim, entendeu? A fazenda era afastada, então os agricultores não tinham acesso a esse lugar pra identificar aquilo que estava comprando na época e isso aconteceu [...] e outra coisa também que aconteceu, a terra foi nos vendida como que era 20% de mata e depois quando veio o mapa tava com 53% de mata. Falaram que a gente ia pegar, é, 20 hectares de terra, depois 10 e quando chegou no final só sobrou 3 pra cada um ... então quero dizer que nós adquirimos uma dívida no valor de uma terra que a gente ia trabalhar e ter condição pra pagar, agora 3 hectares de terra não tem como a pessoa pagar a dívida e sobreviver, muitos às vezes até consegue porque tem outro lucro, trabalha em outras coisas mas pessoas que só trabalham dentro da terra, só trabalha dentro da área, não tem condição de sustentar filho, pagar remédio com três hectares [...]Porque um dia comprou a terra aí foi o sorteio, chegou no dia do sorteio as pessoa pegaram terra, na hora que ia lá ver o terreno que era, era um pedaço, um pedacinho de terreno pequeno, muitas vezes a pessoa pegava, pegou, ia lá ver a terra, a terra cheia de pedra, morro, pedaço de mata e a pessoa, como é que a pessoa ia trabalhar?”
A fala de “R” ainda denuncia a falta de infra estrutura na região e o descaso da Prefeitura em oferecer condições para os agricultores se manterem nas terras.
“[...] Outra coisa, depois que nós peguemos a terra de Serra Queimada, fiquemos sem energia 3 anos, sem infraestrutura porque a gente não tinha estrada, nós fiquemo sem estrada, sem valas ... como que a pessoa vai pegar um terreno sem valas, sem drenagem alguma pra poder trabalhar rápido e poder tirar algo pra poder pagar a divida e sobreviver ainda?”
Em contraposição à relação desigual de poder entre os donos de terra e os assentados, “R” se coloca em relação à auto-organização dos agricultores e às lutas que protagonizaram frente as dificuldades.
“Então foi dessa maneira, a vida dos agricultor não foi fácil lá naquele lugar, hoje a gente tá estruturado? Tamos! Graças a Deus, hoje eu to com meu pedacinho de terra lá, to com a minha casinha lá, mas foi com muita luta. [...] A pessoa vai e fala pro senhor “se você não quiser esse, sai fora!”, aí você sabe que você sabe que não vai conseguir outro, aí tu pega aquilo que tá te dando, aí depois vem as consequências, então gente, é, eu estou aqui, to defendendo a minha área, defendendo os agricultores do lugar, porque na época teve muito problema sim, eu não tinha o conhecimento que eu tenho hoje, a maioria dos agricultores que tão aqui não tinham o conhecimento que tem hoje, os presidentes que tão aqui não tinha os conhecimento que tem hoje, que se fosse hoje eles ia exigir pra ler documentos, que “ah, mas eu tenho que ler pra assinar e comprar a terra”, “não, assina sem ler”, então se você não assinasse você tinha que tá fora, sem ler a documentação que você tinha que pegar terra, poxa, você tá entrando na dívida, comprando algo e você não pode tá lendo o documento? Então isso tudo aconteceu na época, entendeu? [...] hoje nós não somos obrigados a pagar por isso, hoje nós não somos obrigados a perder a nossa terra, a perder a nossa casa, porque hoje não é só terra pura não, que peguemos a terra lá purinha, não tinha nada, mas foi com luta, foi com sacrifício, que muitos abriu vala na mão, tá? Porque não deu infraestrutura pros agricultores, abrimo vala na mão pra poder ter o terreno que tem hoje[...]”
E finaliza deixando clara a angústia vivida pelos assentados na época, assim como as contradições surgidas a partir de que a terra passa a ser mercadoria, e, portanto o lucro através da mesma passa a ser justificável por qualquer meio.
quer dizer, só foi se complicando a vida dos agricultores, nós temos culpa? Temos! Temos culpa sim, sabe de que? De não ter tido conhecimento na época, de não ter tido leitura o suficiente, não ter tido conhecimento de procurar um advogado pra nos auxiliar na época, nós temos culpa sim, temos culpa, muitos têm culpa, mas sabe por quê? Temos culpa de ser analfabeto, temos culpa de não poder ter instrução pra poder tá lendo aquilo que a gente tá comprando, e os que tinham um pouco de instrução, né? Tinham que ter batido o pé firme pra poder ler aquilo que estava comprando, mas infelizmente temos culpa sim porque fomos medrosos de perder aquilo, o sonho, o sonho é tanto, a gente sonhava em ter o nosso próprio pedaço de terra e parar de trabalhar e dar a meia pro dono, então nós fomos culpados sim, de sonhar demais (“R”, em Audiência Pública sobre a Reforma Agrária de Mercado, em 6 de Dezembro de 2016, in SANTIAGO, 2017).
Enquanto as 142 famílias de agricultoras e agricultores que foram assentadas em Serra Queimada se viam em péssimas condições, os agricultores e agricultoras de Ilha Vechi lidavam com problemas técnicos para a garantia do abastecimento de água e o pleno funcionamento da rede comunitária, como o material disponibilizado pela Prefeitura para a tubulação não era de boa qualidade. Porém, mesmo com as dificuldades postas à manutenção da rede hidrocomunitária, o depoimento de um agricultor assentado em Serra Queimada explicita como o início da relação coletiva com a água se deu em torno das duas comunidades.
[...] ficamos quatro anos sem energia elétrica aqui. Sem água seis meses porque nós pedimos um galho à Ilha
Vecchi. A rede tava muito precária já, eles pediram ajuda a nós de R$100,00, cada família, e nós vamo botar pra vocês [...] (“Q” [5] in: D’ANDREA, 2018)
Tendo em vista os problemas que as famílias de Ilha Vecchi vinham enfrentando com o abastecimento de água para as famílias que já estavam incluídas na rede, por causa da qualidade do material, a visão comunitária se mostra sobreposta à visão de mercado desde o início da relação entre as comunidades. Isso fica muito claro com os relatos durante uma reunião na APROVECCHI.
“R”: O que acontece, a gente tem uma quantidade, e tem outras famílias que também já estão dependendo, e aí fica complicado da gente poder aumentar a distribuição.
“L”: É tão triste ter que falar pro cara [que não pode]. É chato.
“R”: A gente passa apertado, chega pra eles pra pedir mas como que a gente vai distribuir pra mais uma casa, já tem tantas, já tá faltando.
Ao que a resposta dada sela a decisão da reunião:
“J.A”: A água é difícil de se negar. (Reunião na APROVECCHI, em 12/05/2017)”[6].
Foi sob um caminho árduo e conflituoso que as comunidades do Vale do Guapiaçu começaram a desenvolver uma difícil luta por emancipação, no que se refere à gestão de das condições metabólifcas de reprodução da vida, dada a falta de apoio do Estado e a péssima condição em que foram assentados os agricultores em Serra Queimada. A partir da solidariedade e da valorização das formas de conhecimento locais, marcadas nos corpos dos homens e mulheres que habitam o Vale do Guapiaçu, que tornou possível o caráter comunitário das relações estabelecidas entre os mesmos, materializado nas redes comunitárias de água.
Assim, há, no decorrer da primeira década nos anos 2000, uma re-organização da ocupação territorial do Vale do Guapiaçu, que junto ao crescente sentimento de coletividade dos habitantes da região, proporcionou o aperfeiçoamento das Redes Comunitárias de Água. Redes essas regidas sob o princípio da autonomia coletiva na gestão do território e do uso comum da água, que antes de ser recurso, é condição necessária à sobrevivência humana e indispensável a todos e todas.
No começo dos anos 2000, as dificuldades enfrentadas pelos recém assentados em Serra Queimada foram melhor superadas graças à solidariedade dos agricultores e agricultoras que já ocupavam o vale e partilhavam da Rede Ilha Vecchi de distribuição de água. A deterioração das estruturas da rede por conta dos problemas técnicos acima explicitados não impediu que as famílias incorporadas à rede de compartilharem água com os recém assentados em Serra Queimada.
Os homens e mulheres do Vale do Guapiaçu constroem formas próprias de satisfazer suas necessidades e a rede comunitária de abastecimento hídrico é, talvez, a melhor prova disso. É a experiência comum, compartilhada entre esses homens e mulheres, a condição para a formação de um ethos comunitário que se constrói na própria articulação entre eles, na perspectiva da formação de uma identidade coletiva[7].
Quando aquele/a que é assentado/a sem as condições básicas para produzir sua vida – e falamos neste caso de elementos como água e energia – vai até o/a outro/a e demonstra a sua condição de vida, aquele/a que o/a recebe o faz e o acolhe porque se identifica e se sente afetado/a pela experiência compartilhada. E se afeta justamente por já ter sido afetado por estas condições. É neste duplo processo – de afetar e ser afetado – que se consolidam os afetos e os laços de solidariedade que se conectam e materializam através das Redes Comunitárias de Água. Isto se torna possível devido há uma complexa episteme camponesa que constitui as formas materiais e simbólicas de interação entre os/as camponesas e a terra, a água, a mata, o alimento e os animais. Ou seja, as Redes Comunitárias de Água se configuram enquanto materialização de uma das múltiplas formas de produção do espaço e do território por parte destes/as agricultores e agricultoras. (D'ANDREA , 2018, p. 78/79)
O passar dos anos fortaleceu os laços entre os integrantes das comunidades do Vale do Guapiaçu e a organização coletiva foi fundamental na consolidação das redes comunitárias de água. D'Andrea (2018) identificou princípios que pautam as relações sociais na região, o que chama de Protocolo Implícito da Água do Guapiaçu, a saber: 1) os laços afetivos construídos através das relações cotidianas regem a dinâmica das relações comunitárias com a água e se apresentam como contraponto à lógica mercantil de apropriação da natureza e individualização das ações. Água não se nega a ninguém seria o primeiro princípio do Protocolo; 2) Indo de encontro ao lema do MAB de que água não é mercadoria, os agricultores e agricultoras do Vale do Guapiaçu encaram a água como bem de uso comum, não permitindo fins lucrativos. Cada integrante da rede deve contribuir financeiramente para tornar possível o reparo e a ampliação do sistema e é só a partir desta lógica que este sistema poderá se consolidar e chegar a cada vez mais casas e famílias. Dessa forma, Contribuição não é pagamento é o segundo princípio; 3) e, por fim, assinalamos que o último princípio que rege o uso comunitário da água no Vale do Guapiaçu diz respeito ao uso da água. A água distribuída pelas Redes só pode ser destinada para o consumo humano. Dessa forma, a rede comunitária de água não é utilizada para lavouras ou animais. “Este princípio traz consigo a lógica de que deve haver um uso consciente por parte de todos e todas que estão inseridos nas Redes Comunitárias e isto deve ser respeitado a partir dos acordos coletivos e encaminhados nas reuniões da APROVECCHI.” (D´ANDREIA, 2018).
Assim, evidenciamos o caráter político e solidário que rege as relações hidrocomunitárias exercidas no Vale do Guapiaçu. Essa forma de organização comunitária proporcionou a ampliação da rede, que atende um universo de 100 famílias em 2018. Hoje, os agricultores e agricultoras das comunidades de Serra Queimada e Ilha Vecchi são abastecidos por duas redes de água: Casarão (oriunda do processo de apropriação camponesa a partir do assentamento Serra Queimada) e a Ilha Vecchi/Serra Queimada. Registra-se que o Casarão em questão representa o caráter de comunidade e coletividade dos agricultores e agricultoras organizados. Na atualidade, a construção que uma vez foi a casa de fazendeiros latifundiários, hoje é o Casarão Comunitário de Serra Queimada, sede das reuniões e demais encontros das comunidades do entorno.
Foto 3: Interior do Casarão de Serra Queimada, atual sede de reuniões das famílias locais (Foto: Julia Ladeira)
[1] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, criado em 1970, como órgão de fusão entre os dois outros que existiam anteriormente ligados à reforma agrária: o IBRA e o INDA (Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário).
[2] Agricultor assentado pelo INCRA e importante mestre da água
[3] Os nomes dos entrevistados foram omitidos para manter sua segurança e não expor seus pontos de vista a outros grupos.
[4] Agricultora e importante liderança local.
[5] Agricultor assentado pelo INCRA e importante mestre da água.
[6] Diálogo entre agricultores do Vale do Guapiaçu, integrantes da APROVECCHI.
[7] Discussão aprofundada por Pedro D'Andrea no trabalho intitulado “As Águas do Guapiaçu entre o bem comum e o capital: O conflito entre as Redes Comunitárias de Água e a barragem”, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. São Gonçalo, 2018.