A região que originalmente foi habitada por indígenas passou, ao longo dos séculos, por momentos em que as terras eram divididas entre muitas famílias camponesas e momentos em que poucos latifundiários detinham poder sobre as terras. A partir da década de 1950 o Estado passou a intervir na distribuição e ocupação das terras para garantir a colonização do território e a produção de alimentos, que sempre foi uma característica marcante dos povos que habitaram esta região. Porém, durante o período de Ditadura Militar, com a forte repressão no campo no estado do Rio de Janeiro, diversas famílias camponesas foram expulsas de suas terras e as mesmas só retornaram para a região após o fim do regime militar, por meio de ocupações de terra e assentamentos. As lutas mais recentes das comunidades que hoje vivem e produzem no Vale do Guapiaçu foram contra as ameaças de construção de barragens no rio Guapiaçu. Não só as comunidades conseguiram barrar dois projetos, como desenvolveram e mantém coletivamente redes de distribuição de água para os moradores. A luta para instalação das redes e manutenção coletiva das mesmas vêm tendo importante papel no desenvolvimento do senso comunitário e na resistência das comunidades frente às pressões de mercantilização da água.
A região se encontra no sopé da Serra do Mar, cadeia montanhosa que se estende, beirando o litoral, do Rio de Janeiro ao norte do estado de Santa Catarina, o rio Guapiaçu tem sua nascente na Serra dos Órgãos (nome local dado a esta parcela da Serra do Mar) e é afluente do rio Macacu, que deságua na Baía de Guanabara. Parte da área correspondente ao Vale do Guapiaçu está inserida no Parque Estadual dos Três Picos, a maior unidade de conservação de proteção integral administrada pelo Estado do Rio de Janeiro.
Foto 1: Terras plantadas na Comunidade de Serra Queimada, Serra do Mar ao fundo - Vale do Guapiaçu - 2017 (Foto: Julia Ladeira)
As características geoambientais da região contam com a vegetação de Mata Atlântica e o forte potencial hídrico e agrícola lá presentes, que desde antes da colonização portuguesa, quando o Recôncavo da Guanabara era ocupado por povos indígenas, vêm caracterizando os usos territoriais dos povos e comunidades que ali habitam. A própria palavra Guapiaçu, nome do principal rio da região onde as comunidades em questão hoje habitam, é manifestação atual de uma ocupação histórica indígena do tronco linguístico Tupi-Guarani. A palavra Guapiaçu significa, segundo Bueno (1982), “A grande cabeceira”, o que torna possível perceber a íntima relação que os diversos povos que ocuparam a região ao longo do tempo vieram tendo com as águas. (CABRAL, 2007) (D’ANDREA, 2018)
A vasta rede hidrográfica do Vale do Guapiaçu sempre foi (e ainda é) fundamental para a garantia da manutenção e reprodução da vida na região e, com o tempo, sofreu alterações em sua paisagem. A mata abundante e os manguezais conviveram com a inserção de muitos pastos e lavouras, mas seguem fazendo parte da dimensão físico ecológica do vale do rio Guapiaçu. Intensamente vinculados à rede hidrográfica, os processos de ocupação foram sendo ressignificados, na medida em que mudanças no perfil da ocupação na baixada da Guanabara foram ocorrendo.
Na época da invasão/ocupação portuguesa, no ano de 1500, uma complexa rede de aldeias habitava o Recôncavo da Guanabara (região correspondente à atual Baixada Fluminense e outros municípios ao redor da Baía de Guanabara). No decorrer do século XVI, as terras do Vale do Guapiaçu tornaram-se sesmarias. Como o responsável na época, o fidalgo português Miguel de Moura, não fez uso produtivo da terra, foi doada a Companhia de Jesus, sob comando de jesuítas. Nesse processo, os povos indígenas originários ou eram considerados inimigos (e nesse caso, massacrados) ou aliados (assim foram cristianizados e escravizados), (MAB, 2015). O rio Guapiaçu, à época, se caracterizava por ser uma das principais vias de acesso ao interior e permitia a interiorização da colonização no Recôncavo da Guanabara, pois era um rio considerado navegável. Segundo o Dossiê do MAB (2015), dentre as atividades econômicas da região, além dos engenhos para a produção de açúcar e a extração de madeira, destaca-se a intensa produção de farinha de mandioca, arroz, feijão e milho - alimentos, que, registre-se, ainda hoje são produzidos nos terrenos agricultáveis da região.
A expulsão dos jesuítas, já em meados do século XVIII, fez com que as terras do Vale do Guapiaçu se tornassem de posse da Coroa, que as leiloou. Ao longo do século XIX as terras passaram por diversos proprietários. Um surto de malária neste período ocasionou a diminuição da população local e o abandono de muitas áreas, o que, posteriormente, veio a favorecer o processo de grilagem das terras.
Já no século XX, durante o Governo Vargas, em meados dos anos 1950, Núcleos de Colonização foram desenvolvidos na região, cujo objetivo era ocupar as terras da área em que se encontrava o vale do rio Guapiaçu para garantir a produção de alimentos para o abastecimento da capital federal, que, na época, era a cidade do Rio de Janeiro. Dessa forma, muitos trabalhadores e trabalhadoras rurais migraram de outras regiões do estado e de estados vizinhos para a município de Cachoeiras de Macacu.
A partir desse momento, a região de Papucaia (localizada em Cachoeiras de Macacu) e seu entorno, envolvendo o Núcleo Colonial, o distrito de Sambaetiba em Itaboraí, onde está situado o Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) e o Conjunto Rural do Guapiaçu, se destacará sob o ponto de vista dos conflitos fundiários.
As intervenções estatais foram sucessivas e diversas, cujo objetivo era disciplinar a ocupação das terras da região, feita por famílias oriundas de diversos lugares do território fluminense e de outros estados em busca de terra e trabalho. Como veremos adiante, a criação do Núcleo Colonial de Papucaia na década de 1950, as desapropriações da fazenda São José da Boa Morte, em 1964 e novamente em 1981, a constituição do Conjunto Rural do Guapiaçu, a transformação da fazenda Serra Queimada em empreendimento do Banco da Terra e os projetos de construção de barragens nos indicam a tensão latente e a relevância da luta pelo acesso à terra/território no Estado do Rio de Janeiro[1].
Neste processo, um grupo de trabalhadores e trabalhadoras que não havia conseguido acesso à terra prometida no Núcleo de Colonização Papucaia realizou a ocupação da fazenda o que deu origem a um dos conflitos mais graves registrados na história do Estado do Rio de Janeiro: o da Fazenda José da Boa Morte. A fazenda foi ocupada em 1961 pela primeira vez e, após duas ocupações, a fazenda foi desapropriada em janeiro de 1964 para o assentamento das famílias de agricultores que haviam procurado o Núcleo Colonial Papucaia, mas não haviam conseguido terra (MAB, 2015).
Contudo, com o Ditadura Civil-Empresarial-Militar, que interveio fortemente no campo de 1964 até finais dos anos 1980, o Exército expulsou o grupo assentado da área, e aos poucos passou a devolver as terras da fazenda aos antigos proprietários. Parte dessas famílias foi para as fazendas Vecchi e Quizanga, nas proximidades do Rio Guapiaçu, onde trabalhavam como colonos (MAB, 2015).
O período ditatorial se caracterizou pelo intenso controle e repressão na região de Cachoeiras de Macacu. A estrutura fundiária do município gerou diversos conflitos, o que contribuiu para que Cachoeiras de Macacu fosse um dos principais focos de repressão neste período. De acordo com a pesquisa Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro, 1964-1988 (MEDEIROS, 2015), das 184 prisões de trabalhadores rurais registradas em todo o estado do Rio de Janeiro durante a ditadura, 141 ocorreram somente no município de Cachoeiras de Macacu, representando 76,6% do total. Isto, além de todas as outras formas de violência praticadas contra os trabalhadores, que vão de destruição de ferramentas de trabalho e lavouras, até assassinatos – indicador que o município também apresenta os maiores números em relação ao estado, concentrando 22 do total de 51 registros (43,1%).
Mesmo com o contexto de repressão, boa parte das famílias permaneceu nas proximidades e ocupou localidades vizinhas, como Serra Queimada. Somado a este fato, um conjunto de 62 famílias de agricultores e agricultoras, despejados de uma fazenda na localidade do Imbé, no município de Campos dos Goytacazes, estavam à mercê do governo civil-empresarial-militar, pois eram assentadas de um terreno desapropriado para fins de reforma agrária na década de 1960, porém o Estado brasileiro também devolvera a posse das terras aos antigos proprietários. Assim, foi criado o “Conjunto Rural Guapiaçu” pelo IBRA[2], formado pelas fazendas Vecchi, Quizanga, pelas glebas Sebastiana e Queiroz, pertencentes à Fazenda do Carmo, e mais algumas áreas.
A assistência prometida a estes agricultores e agricultoras, com construção de casas e postos de saúde, não foi cumprida, com reconhecimento formal do Serviço Nacional de Informações (SNI) que, segundo o MAB (2015), assentiu que a área foi prejudicada pela omissão do Estado e pelas contradições intrínsecas aos aparatos jurídicos formais relacionados à questão fundiária.
Portanto, podemos assinalar que o Vale do Guapiaçu faz parte de um cenário municipal de muita conflitividade e disputa por terra/território. Nesse sentido, os grupos sociais que ali resistiam passaram por uma década turbulenta nos anos 1980. Assim sendo, neste período, a comunidade do Vale do Guapiaçu se articulou para resistir contra um projeto de construção de barragem no rio Guapiaçu, proposto pela Central de Abastecimento do Rio de Janeiro (CEDAE), cuja razão era a criação de um reservatório hídrico. Foi a luta e organização comunitária que fizeram com que o projeto fosse anulado.
Mais para frente veremos que as comunidades rurais do Vale do Guapiaçu, consolidadas enquanto grupo social que garantiu o acesso à terra via luta e assentamentos rurais, recentemente tiveram que se organizar para travar uma nova luta contra construção de uma barragem. Desta vez, sob justificativas mais robustas e com o participação da iniciativa privada. A luta contra a barragem mostrou que, para além de conflitos territoriais, o que estava em jogo eram visões diferentes da relação sociedade/natureza e do planejamento dos recursos territoriais. É nesse contexto que o Movimento dos Atingidos por Barragens se insere no território do Vale do Guapiaçu e articula-se com a comunidade na luta contra a barragem, movimento que se mostrou de suma importância na organização do povo na região, cuja luta vem tendo sucesso na resistência contra a barragem até os dias de hoje.
[1] Informações retiradas do Material Didático para as oficinas do projeto de extensão Memórias da Luta pela Terra no Estado do Rio de Janeiro, 2018, realizado por: Secretaria Municipal de Educação de Cachoeiras de Macacu (Gestão 2017-2020); Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; Universidade Federal Fluminense; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Movimento dos Atingidos por Barragens; Grupo de Trabalho em Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seções Rio e Niterói (GT Agrária – AGB); Sociedade Clube da Esquina de Amigos do Arquivo Histórico de Cachoeiras de Macacu.
[2] O IBRA foi um órgão criado em 1964, diretamente subordinado à Presidência da República e tinha como objetivo principal atuar na execução do Plano Nacional de Reforma Agrária. Como parte do órgão, foram criadas as “Comissões de Verificação e Regularização”, que visavam apurar a obediência às leis agrárias pelos agricultores dos Núcleos de Colonização e podiam aplicar sanções e até expulsar aqueles que não as cumprissem. As Comissões eram compostas por ex-soldados do 1° Batalhão da Polícia do Exército do Rio de Janeiro e ficaram conhecidas como Guarda Rural do IBRA.