Recentemente, com a inserção da Autarquia Municipal de Água e Esgoto de Cachoeiras de Macacu (AMAE), passaram a ocorrer tentativas de apropriação da água do Vale do Guapiaçu pela Prefeitura a partir de que o Plano Municipal de Saneamento Básico de Cachoeiras de Macacu passou a prever expansão do controle da captação, tratamento e distribuição de água, em 2013. Provocando um processo de reorganização comunitária do controle e gestão da água, que fortalece o poder que os moradores têm sobre o seu território, os homens e mulheres das comunidades vêm reafirmando sua posição comunitária frente às diversas de apropriação que enfrentam. Em uma dessas investidas, um técnico da AMAE chegou a usar um argumento sem qualquer respaldo da lei, dizendo que a partir da transferência do controle das redes para a AMAE, a mesma poderia emitir uma outorga pelo uso da água e que isto poderia impedir a construção da barragem do rio Guapiaçu. Contudo, o próprio fato da AMAE disputar o controle da distribuição de água na região com as comunidades, mostra que a mesma reconhece o poder que os homens e mulheres do Vale têm sobre o seu território e, portanto, sobre aqueles elementos necessários para a reprodução de suas vidas. O controle e gestão das redes hidrocomunitárias é dos integrantes das comunidades do vale do Guapiaçu e, mesmo que esteja em disputa, a própria existência da disputa, demonstra que a sabedoria da comunidade não pode ser ignorada.
Apoiado em Gutierrez Aguillar (2011), D'Andrea (2018) nos mostra que,
[…] o processo de emancipação social desde a autonomia, um modo carregado de conteúdos concretos e sempre abertos, já que não há um conjunto de objetivos explícitos e sistemáticos que devem ser almejados. Esta busca pela emancipação através da autonomia traduz-se, na prática, como uma trajetória em que os desafios estão intrínsecos a esta forma de construir o poder a partir da confrontação da ordem política e econômica estabelecida. Ou seja, é preciso entender o processo de construção da autonomia enquanto um caminho constante que irá desafiar a capacidade e a criatividade do coletivo para enfrentar as diferentes formas de tentativa de desarticulação concreta e simbólica do movimento (D'ANDREA, 2018. p. 90).
Assim, no Vale do Guapiaçu o processo de expansão e constituição das Redes Comunitárias de Água enquanto forma de apropriação e uso comum da água no território está relacionada ao desenvolvimento dos saberes-e-fazeres constituídos por quem habita o Guapiaçu. Constroem horizontes de sentido para a vida compartilhados enquanto recriam maneiras de re-produção da vida, através dos processos de sociabilidade que são intrínsecos a construção das redes comunitárias de água.
As relações sociais marcadas pela solidariedade e o princípio da comunidade se expandem para além da distribuição e abastecimento de água e encontram as terras agricultáveis do vale do Guapiaçu. A partir das redes hidrocomunitárias, a sobrevivência dos moradores é garantida e permite o desenvolvimento de formas coletivas de manejo da terra e da água, marcadas pela convivência e auto-organização. Fruto disso é a alta produtividade agrícola da região, que não só abastece os integrantes da comunidade, mas garante a produção de milhares de toneladas de alimentos, tais como aipim, milho, jiló, quiabo, laranja, goiaba, palmito de pupunha, hortaliças e leite. Mensalmente, os resultados dessa alta produção são levados para o CEASA do Rio de Janeiro (o que representa 40% do total ali comercializado) e para mais de 70 escolas estaduais, para servir como merenda escolar.
No campo da agricultura, as comunidades do Vale do Guapiaçu mostram como os saberes tradicionais da episteme camponesa local, múltipla e diversificada, resistem frente às imposições da modernização agrícola. As diferentes concepções de sentir-pensar-fazer a agricultura presentes dos corpos e memórias dos distintos sujeitos que hoje habitam o Guapiaçu, atravessadas por um contexto histórico de implementação vertical dos pacotes tecnológicos da agricultura moderna, re-existem no decorrer do tempo-espaço, onde cada família cria suas próprias formas de lidar com estas imposições que se iniciam em meados de década de 1960.
Na atualidade, o processo constante de construção coletiva das redes hidrocomunitárias e das práticas agrícolas “se vê ameaçado frente a tentativas de apropriação externa, decorrendo em uma inflexão das concepções locais de poder e das próprias relações/disputas pelo poder, sendo assim construído um horizonte político e ideológico.” (D'ANDREA, 2018). O Vale do Guapiaçu é palco de disputas de interesses sobre o uso dos recursos territoriais. Isso porque a população resiste contra a proposta de construção de uma barragem no rio Guapiaçu.
O projeto de construção de barragem no rio Guapiaçu reativa as histórias de expropriação, expulsão e violência que já marcam as memórias das famílias que habitam a região. O projeto de barragem é contrapartida ambiental ao projeto de construção de uma das maiores refinarias do Brasil, o COMPERJ da Petrobrás[1]. Além disso, é apresentada como solução para o cenário de estresse hídrico na região leste metropolitana da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, se concretizada, inundará 2.100 hectares e atingirá cerca de 800 famílias, além de impedir a produção agrícola de uma das áreas que mais fornecem alimentos à CEASA, como assinalamos acima.
[1] O Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro foi o projeto de construção do maior complexo de refinaria e beneficiamento de petróleo do Brasil. O projeto surgiu em 2006, causou enorme especulação imobiliária no município de Itaboraí por causa da promessa de geração de empregos e foi interrompido anos depois, devido aos problemas com denúncias de superfaturamento de obras, inconsistências no licenciamento ambiental e denúncia de envolvimento em esquemas de corrupção de um dos principais fornecedores. O espaço do complexo se encontra hoje num cenário abandonado, com as obras pela metade e diversos prédios novos construídos pela especulação imobiliária, são hoje prédios fantasma.