Fundo de Pasto de Areia Grande: O sertão baiano e o modo de vida de seu povo
O conflito vivenciado é fruto da concentração fundiária que marca a história da propriedade nacional. Com elementos que remontam à invasão portuguesa, tal problema agravou-se em 1850, com a Lei n° 601, conhecida como Lei de Terras, que sacramentou o latifúndio. Essa lei favoreceu também a privatização das terras públicas. Escravos e indígenas foram alijados. Entretanto, multidões continuaram no campo.
Desde então, essas pessoas que permaneceram praticam a agricultura de subsistência, nas áreas umedecidas pelas cheias do riacho ou nas terras secas durante o período chuvoso, entre os quatro ou cinco meses de fim e início de ano. Em Areia Grande o principal produto agrícola, a mandioca, é transformado em farinha e tapioca (fécula), afamadas pela sua qualidade. Atividade tão importante ou mais é a criação de caprinos, ovinos e bovinos, para o que dependem sobremaneira do território. A pesca artesanal, ainda que não praticada profissionalmente por todos, tem sua relevância nutricional e também econômica. Atividades complementares, mas também essenciais, são o extrativismo de frutos, fibras, ervas medicinais e lenha e, mais recentemente, a apicultura, produtora de um mel de excelente poder nutricional devido à diversidade e intensidade florais da caatinga no período chuvoso.
Foto: Carmelo Fioraso
Essas comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de forças sociais e políticas que visam estabelecer um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, que é de “convivência com o semiárido”.
Areia Grande e a resistência dos Fundos de Pasto
Esta região do Rio São Francisco[1] passa por grandes e aceleradas transformações a partir da modernização no Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, nos anos 1937-1945. A industrialização, decisiva para a mineração e a siderurgia, teve o São Francisco como fornecedor de energia elétrica. Em 1940 foi criada a Companhia Hidrelétrica do São Francisco – CHESF. Como compensação criou-se a Comissão do Vale do São Francisco em 1948 para tratar do desenvolvimento do Vale, a mesma que os militares transformaram em SUVALE em 1968 e CODEVASF em 1972.
O processo de ocupação dos sertões formou classes dirigentes locais, oligárquicas, funcionalmente articuladas com instâncias superiores do poder durante o Império e a República Velha (até 1930), que se reciclou nos períodos subsequentes e manteve-se soberana na região até recentemente. Baseadas na legitimidade patriarcal, estas oligarquias tinham no controle das políticas e recursos públicos e na troca de favores com a população, a estratégia de manutenção do poder, seja qual fosse o regime.
Na segunda metade dos anos 1970 a CHESF constrói a barragem e a hidrelétrica de Sobradinho, que veio a expulsar 72 mil pessoas, sendo 2/3 camponeses das beiras e caatingas do São Francisco. A criação do Lago de Sobradinho oportunizou a implantação de perímetros públicos de irrigação agrícola e atração de empresas como a Agroindustrial Camaragibe, do Rio de Janeiro, que se aproveitou dos incentivos do Proálcool para um megaprojeto de produção de álcool a partir da mandioca no território de Areia Grande.
A única porção do território não tomado pela empresa foi a do Riacho Grande, defendido pela comunidade, apesar de todas as pressões e violências, com apoio da CPT entre outros parceiros. Foi esta mesma resistência que criou condições para a retomada do restante do território em conjunto pelas demais comunidades, quando a Camaragibe entrou em falência fraudulenta, caso que fez parte do conhecido “escândalo da mandioca”, no qual empresários tomaram empréstimos públicos no Banco do Brasil para o plantio de mandioca do Proálcool e plantaram maconha ou investiram em outros ilícitos.
A primeira ameaça de expulsão sofrida foi a Barragem de Sobradinho. E a primeira resistência foi não aceitar a relocação para as agrovilas distantes 700 km, e permanecer no local apesar das perdas. Em 1979, a empresa Agroindustrial Camaragibe, com apoio da oligarquia local, “adquiriu” terras da comunidade de Riacho Grande. O empreendimento visava produzir álcool de mandioca; na verdade, um golpe conhecido como “escândalo da mandioca”. A comunidade resistiu a todas as violências, no que serviu de exemplo para toda a região.
A empresa acionou a Justiça para retirada dos posseiros, mas não foi atendida pelo então Juiz da Comarca. O Instituto de Terras da Bahia - INTERBA mediu e titulou parte das terras do Riacho Grande, reconhecendo que aquelas terras foram griladas. O órgão sucessor, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário – CDA, não concluiu os trabalhos. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA também foi acionado diversas vezes, sem resposta. Apesar da relativa vitória da comunidade de Riacho Grande, a Camaragibe instalou equipamentos, o que não impediu os posseiros de soltar seus animais e produzir nas áreas.
A empresa Agroindustrial Camaragibe S.A abandonou o projeto de produção de álcool biodiesel e apropriou-se do financiamento público, deixando uma dívida milionária com o Banco do Brasil, no contexto do chamado “Escândalo da Mandioca”, de repercussão nacional.
Em 2004, o Banco do Brasil adquiriu o direito sobre os títulos supostamente de propriedade registrados pela empresa nas terras de Areia Grande, Como forma de pagamento da dívida e os transferiu para os empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva.
Em 2006, tais empresários ingressaram com uma ação judicial (n°1353785-3/2006) contra 11 moradores de Areia Grande, acusando-os de invasores e requerendo a imissão daqueles na posse da área, o que foi aprovado pelo juiz de direito de Casa Nova, sem sequer ouvir o Ministério Público.
Em 2007, as comunidades de Riacho Grande, Melancia, Salina da Brinca e Jurema, perceberam que a área era insuficiente para a vida no território e o retomaram.
Com o “escândalo da mandioca”, a empresa deixou o local e uma dívida milionária junto ao Banco do Brasil. Os posseiros recuperaram o uso de toda a área da Areia Grande. Nela, atualmente eles têm aproximadamente três mil caixas de abelha (30 mil litros de mel/ano) e 13 mil cabeças de caprinos e ovinos.
O Juiz de Direito de Casa Nova conferiu aos empresários Carlos Nizan e Alberto Martins Pires de Matos, a “propriedade” das terras da Camaragibe, por eles “adquiridas” numa sucessão de negócios obscuros. Tal registro é completamente ilegal pois a legislação brasileira proíbe o registro de terras que não tenham registro anterior no cartório de imóveis. Tais terras são consideradas públicas devolutas. Lei Estadual da Bahia, nº 3.442 (1975).
Em 06 de março de 2008, com uma ordem de despejo do Juiz, sob supervisão de um Oficial de Justiça, policiais e prepostos dos empresários invadiram a área ocupada secularmente pelas comunidades, destruíram casas, chiqueiros, currais, roçados, árvores centenárias da caatinga, milhares de metros de cercados, e exigiam imediata retirada de cerca de 3.000 caixas de colmeias de abelhas instaladas no local há mais de 05 anos pelos apicultores das comunidades, levando a prejuízos calculados em mais de um milhão de reais.
Os moradores acamparam no local para impedir a continuidade da destruição de suas benfeitorias. Capangas encapuzados, portando armas, invadiram o acampamento e promoveram tiros, ameaças de morte e agressões físicas.
Em novembro de 2008, o Estado reconheceu tanto a natureza pública das terras, como a legitimidade de sua ocupação tradicional, e ingressou com a Ação Discriminatória Judicial em Casa Nova, a fim de arrecadar as terras griladas.
No dia 04 de fevereiro de 2009, foi encontrado o corpo de um dos líderes dos posseiros, José Campos Braga, conhecido como Zé de Antero, que nunca deixou a área, nela brutalmente assassinado. As comunidades não arrefeceram, embora sem conseguir, nem mesmo a conclusão do inquérito da morte do seu companheiro. Manifestaram-se na cidade e foram por diversas vezes à capital do Estado atrás de apoio e providências.
Audiência pública realizada pela Ouvidoria Agrária Nacional no município de Casa Nova, com a presença de diversos órgão do Estado e levou a deflagração, pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário, de uma ação discriminatória administrativa rural para investigar a grilagem, a qual concluiu que as terras reivindicadas pelos empresários eram públicas devolutas e que os registros de terra em nome dos mesmos eram nulos. Tais irregularidades também foram reconhecidas pela Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que após realizar inspeção no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca determinou o bloqueio das matriculas da área em litigio.
Em 2010, com o pretexto de conhecer a realidade dos Fundos de Pasto, o Juiz resolveu fazer uma vistoria na área com o consentimento das comunidades. Duas semanas depois, resolveu invadir a área com os prepostos da empresa e o representante do Ministério Público, com a finalidade de produzir um relatório contradizendo a existência da posse das famílias.
O Ministério Público, negou o pedido do Estado da Bahia de reconhecimento da terra como devoluta e determinou a expedição de mandado de imissão de posse em favor dos empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva.
O juiz de direito da Comarca suspende os efeitos de sua decisão, possibilitando aos réus e demais moradores das comunidades o retorno à área, decisão essa que foi fortalecida com a proposição, pelo Estado da Bahia, da Ação Judicial Discriminatória 000155-03.2008.805.0052.
Em 03 de junho de 2012, foi publicado no Diário Oficial do Estado (DOE) o processo o Discriminatório Administrativa Rural da "GLEBA RIACHO GRANDE", CASA NOVA - Ba, através da Portaria n° 019/2008, abrangendo uma área inicial de um pouco mais de 20 mil hectares.
Durante a tramitação da Ação Discriminatória Judicial 000155-03.2008.805.0052 (2008 – 2016), diversas provas foram produzidas pelo Estado da Bahia, por Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva e pelas Associações Comunitárias de Areia Grande e em nenhum momento os empresários conseguiram comprovar a legalidade dos registros que embasam o suposto direito de propriedade dos mesmos.
O relatório da discriminatória administrativa realizada pela CDA, certidões de registro em cartório do imóvel, depoimento do oficial do cartório reconhecendo que registrou posse como se fosse propriedade, decisão da Corregedoria do TJ-BA anulando as matrículas do imóvel: todas atestam a invalidade dos registros de terra apresentados pelos empresários.
Esse também foi o entendimento do Ministério Público do Estado, que em parecer elaborado em 2015, opina pelo deferimento do pedido do Estado da Bahia de reconhecimento da terra como devoluta e pela anulação dos registros efetuados ilegalmente sobre a área.
A Antropóloga do Ministério Público Federal elaborou estudo sobre o modo de vida das comunidades e reconhece que a área em litigio é ocupada, histórica e tradicionalmente por dezenas de comunidades, que fazem uso comunitário da área, na forma de fundo de pasto. No entanto, o Juiz deliberadamente, desconsiderou todo esse conjunto de provas e proferiu sentença afirmando que a área é propriedade privada dos empresários e negando o pedido do Estado da Bahia.
11 de julho de 2016 - publicação da sentença proferida pelo juiz de direito da Vara Cível da Comarca, no bojo da Ação Discriminatória 000155-03.2008.805.0052, que discute conflito envolvendo grilagem de 26 mil hectares.
Em setembro de 2016, o Desembargador e Ouvidor Agrário Nacional, requereu ao empresário Carlos Nisan que não entrasse com o pedido de reintegração de posse da área que abrange o território da Areia Grande, em Casa Nova,
Dia 26 de março de 2017, suspensão da decisão judicial, emitida pelo ex-juiz da comarca de Casa Nova Eduardo Padilha, pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
O magistrado determina ainda que os empresários sejam emitidos na posse na área, com uso de força policial, por conta da Ação de Imissão de Posse de 2006. Tal determinação viola a Lei Federal 6383 de 1976 que impõe que Ação Discriminatória Judicial suspende todas os outros processos que discutem direitos de posse ou propriedade sobre a área. A decisão de Eduardo Padilha faz com que a Ação de Imissão de Posse n°1353785-3/2006 volte a ser movimentada antes da ação discriminatória judicial chegar ao seu fim, situação que só poderia ocorrer após a mesma transitar em julgado (não haver mais possibilidade de recursos ou os mesmos serem julgados pelo Tribunal), o que ainda não ocorreu.
[1] O Rio São Francisco é o maior rio totalmente brasileiro, percorre por quase 3000 km oito estados, por ter sido o meio de penetração no território e o principal meio de comunicação entre o Nordeste e o Sudeste, é chamado “rio da integração nacional”. Em suas margens desenvolveu-se até meados do século XX a “economia do catado”, baseada na comercialização feita pelas embarcações nos inúmeros portos dos produtos regionais, maioria feita por pequenos produtores agropecuários e pescadores. Outro apelido do São Francisco foi “rio dos currais”, devido as fazendas de gado postadas às suas margens pelos colonizadores a partir do século XVII, em que além de matrizes animais eram colocadas uma família de negros escravos para desenvolver a atividade pecuária. A marca desta história está na cor negra da pele e nos costumes do povo ribeirinho, que sabe combinar magistralmente beira-rio e caatinga.