O direito costumeiro dos Fundos de Pasto e a legislação oficial em Areia Grande
Os Fundos de Pasto em geral e o de Areia Grande em particular, dizem respeito à pertinência contemporânea das comunidades tradicionais e seus territórios, seja como freio à expansão ilimitada do capital sobre os bens naturais (nem sempre “recursos” para os humanos), seja como referência de relação menos predatória com estes bens. Esta é uma vertente teórica bem representada por Joan Martinez-Alier[1].
Reconhecidos como Comunidades Tradicionais, os Fundos de Pasto juntamente com quilombolas, entre outros, conseguiram reconhecimento nacional através do Decreto 6.040/2007, que determina a composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais, criada para articular políticas públicas para o desenvolvimento, com os territórios reconhecidos, espaços essenciais à reprodução dos diferentes modos de vida.
Articulada com esta importância recente destes territórios controlados por comunidades tradicionais está a mais antiga democratização do direito à propriedade da terra no Brasil, a estas podem se agregar também a discussão sobre o papel dos movimentos sociais.
Atualmente, os Fundos de Pasto são protegidos na Constituição Baiana de 1989, no Artigo 178, pela Constituição Federal de 1988 no Artigo 216, e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT.
A Convenção n º 169 foi assinada pelo Brasil em 2002, com força de norma constitucional, por tratar de matéria de direitos humanos, reconhece diversos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais e, se somam os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, o Decreto 6040 de 2007, o artigo 178 da Constituição do Estado da Bahia
A Constituição Federal de 1988 - Art. 225, §5º determina que as terras devolutas necessárias à proteção dos ecossistemas naturais (assim como as arrecadadas pelos Estados por ações discriminatórias) são indisponíveis.
A partir de então, a Lei (CE 1989) institui os Fundos e fechos de Pastos como maneira legítima de posse de terra. Mas regulamentada apenas em 2013, de maneira confusa e com nenhuma segurança para os camponeses, enquanto a legitimação de posses de má fé, ou seja, a titulação de terras devolutas griladas por fazendeiros vem acontecendo.
A Lei nº 20.417/2013, no art. 04 § 3º - O Estado da Bahia priorizará a regularização fundiária das terras públicas estaduais, rurais e devolutas, ocupadas pelas comunidades de que trata esta Lei envolvidas em conflitos coletivos pela posse da terra. E na própria legislação[2], autoriza o Estado a proceder à regularização fundiária das comunidades de fundos e de fechos de pastos, através de contrato de concessão de direito real de uso, com duração inicial de noventa anos, podendo ser prorrogado.
Um ponto polêmico está na incompatibilidade do artigo 188 da Constituição Federal de 1988 com os artigos 178 e 187 da Constituição Estadual da Bahia[3], a qual prescreve, nos termos da lei que o Estado, se considerar conveniente, poderá conceder o direito real da concessão de uso, gravado de cláusula de inalienabilidade, à associação legitimamente constituída e integrada por todos os seus reais ocupantes, especialmente nas áreas denominadas de Fundos de Pastos ou Fechos e nas ilhas de propriedade do Estado (CE BAHIA,1988. Art. 178, parágrafo único).
O Contrato de Direito Real da Concessão de Uso não assegura a autonomia das comunidades, nem a segurança jurídica e ainda depara com a burocracia dos órgãos públicos. Apenas autoriza o uso por terceiros de bem imóvel, que são as terras públicas estaduais, insuscetíveis de serem usucapidas em razão do parágrafo único do art. 183 da Constituição Federal de 1988.
A Lei nº 12.910, de 11 de outubro de 2013, veda a possibilidade de destinação da terra para outra finalidade que não seja a de reprodução física, social e cultural das comunidades de fundo e fecho de pasto. Mas, o Estado preso ao paradigma legalista, e privatista desconsidera a história e o processo mais efetivo de participação dos sujeitos coletivos de direitos, em função de suas especificidades e das desigualdades históricas. Sendo assim, de acordo a Procuradoria Geral do Estado, a rescisão unilateral do contrato é cláusula exorbitante plenamente legal e possível, tendo em vista que o contrato administrativo obedece ao regime de direito público. Invoca-se o interesse público do Estado da Bahia como um todo, sem que isso desmereça ou diga irrelevante o modo de vida tradicional e o reconhecimento dos territórios. Ademais, como dito anteriormente, a rescisão unilateral será feita em caso de interesse público ou de descumprimento de cláusula contratual (PROCESSO Nº 0880140018724).
Na luta em defesa do território de Fundo de Pasto estes camponeses interagiram com uma grande quantidade de atores, entre inimigos, parceiros e aliados. Entre estes últimos, pela importância para a sustentação da luta, citamos, além da Comissão Pastoral da Terra, a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia - AATR, a Paróquia, os Sindicatos de Trabalhadores da região - STR (rurais e urbanos), o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA, o Serviço de Assessoria às Organizações Populares Rurais - SASOP, outras comunidades da região, pessoal das escolas, profissionais da imprensa (TV, rádio, jornais) etc. Participaram também, de modo às vezes recalcitrantes e ambíguas, funcionários de órgãos públicos como a Coordenadoria de Desenvolvimento Agrário - CDA, a Procuradoria Geral do Estado e o Ministério Público Federal.
[1] MARTINEZ-ALIER, Joan. O ecologismo dos pobres. São Paulo, Cortez, 2007.
[2] Art. 2º - Fica autorizada a concessão de direito real de uso das terras públicas estaduais, rurais e devolutas, ocupadas tradicionalmente, de forma coletiva, pelas comunidades de Fundos de Pastos ou Fechos de Pastos, com vistas à manutenção de sua reprodução física, social e cultural, segundo critérios de autodefinição, e em que sejam observadas, simultaneamente, as seguintes características:
I - Uso comunitário da terra, podendo estar aliado ao uso individual para subsistência;
II - Produção animal, produção agrícola de base familiar, policultura alimentar de subsistência, para consumo ou comercialização, ou extrativismo de baixo impacto;
III - cultura própria, parentesco, compadrio ou solidariedade comunitária associada à preservação de tradições e práticas sociais;
IV - Uso adequado dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, segundo práticas tradicionais;
V - Localização nos biomas caatinga e cerrado, bem como nas transições caatinga/cerrado.
[3] CE. Art. 187 - O Estado, através de organismo competente, desenvolverá ação discriminatória visando a identificação e a arrecadação das terras públicas como elemento indispensável à regularização fundiária, que se destinarão, preferencialmente, ao assentamento de trabalhadores rurais sem terra ou reservas ecológicas.